As paredes de concreto reforçadas com frias e pesadas chapas de plutânio – uma liga de chumbo e titânio desenvolvida no Leste Europeu quando da Guerra Nuclear entre os Estados Europeus e a Grande Rússia – significavam que Getúlio fora levado até o centro de comando da Brigada Militar. A Brigada, antiga força de policiamento no do estado do Rio Grande do Sul, foi declarada clandestina pelo Ato Institucional nº52 do Império Democrático Pan-Brasileiro. Com o fim da federação, as forças policiais, civis ou militares, dos antigos Estados foram extintas. O poder de policia, como todos sabem, somente podia se exercido pela Policia Ideológica, sob o comando do Ministro da Justiça, Segurança e Bem-Estar, braço forte do Imperador.
Getúlio Borges reconhecia aquela sala. Foi ali, anos antes, que recebeu as divisas de sargento do Novo Exército Farroupilha. Naquela ocasião, se apresentara voluntariamente, por acreditar que um Estado Gaúcho independente seria a melhor alternativa para um povo ignorado e esquecido por nortistas corruptos e ingratos. A sala agora parecia melancólica, sem esperança, exatamente o oposto da última vez que ali estivera.
Os músculos de seu corpo doíam em função das amarras que o prendiam à cadeira de madeira. As cordas, velhas, sujas e poídas, estavam molhadas e cheiravam a urina. Apesar do indigno tratamento recebido, não havia marcas de violência física em seu corpo. “Ao menos não fui espancado”, pensou aliviado Getúlio.
A sala não possuía janelas, mas era bem ventilada por passagens de ar próximas ao teto. Uma única porta dava acesso, e a mesma era guardada por dois soldados enormemente fortes, com uniformes ridículos do século XXI. As tentativas de evocar o passado as vezes não passavam de uma enorme piada de mau gosto.
Foi então que a luz, antes fraca e bruxuleante tornou-se forte e luminosa. O sentimento de abandono da sala foi tomado por um de imponência, na medida em que a única porta se abriu e através dela surgiu a silhueta de uma mulher confiante e poderosa. Getúlio não pode deixar de perceber que quem entrava na sala devia gozar de altos privilégios no exército Farroupilha, pois seu uniforme, de Kevlar BSA-K6 de terceira geração, somente podia ser encontrado nos círculos de oficiais dos mais ricos exércitos do mundo. Sobre seus fartos e belos seios Getúlio pode ler: “Major Straussmann”.
- Eu mandei soltar as amarras do nosso convidado. Alguém pode me explicar por que minhas odens ainda não foram cumpridas?
Os dois soldados que guardavam a porta correram na direção de Getúlio. Os brutamontes que faziam o serviço sujo já tinham aprendido a jamais questionar as ordens da Major Aline Straussmann. Sua voz macia como seda e seu caminhar leve escondiam um agressividade e um rancor que poderia terminar com a carreira de qualquer subalterno. Ou mesmo com a vida.
Aline fitava Getúlio largado e mal acomodado na desconfortável cadeira como se não passasse de um monte de carne e por um momento se perdeu nos pensamentos. Homens para ela não passavam de objetos para a satisfação de seus desejos. Quando retomou o controle de si, arrancou a mordaça que cobria a boca de Getúlio e, suavemente, lhe estendeu um copo de água fria.
- Podes beber. É água reciclada, livre de contaminação.
Getúlio, ainda lerdo após o choque imobilizador muscular (desde seu tempo de soldado nunca entendeu porque aplicar o choque nos mamilos...), deixou escorrer pelo queixo parte da água que bebia. Era boa. O odor lembrava ainda o de suor, mas o sabor era de água limpa. Desde a explosão das pragas transgênicas nos campos, as fontes naturais de água ficaram completamente poluídas por agrotóxicos, produtos químicos e radioativos. Tudo na esperança de acabar com a nova geração de taturanas escarlates, uma espécie mutante que apareceu pela primeira vez na Grande Passo Fundo nas lavouras de soja e milho transgênicos.
Quando finalmente terminou de beber, Aline recolheu o copo d’água. Aos poucos seu olhar e sua expressão facial foi endurecendo. Ao falar, contrastavam em sua voz a firmeza de quem dá ordens e a sensualidade de quem manipula o sexo oposto.
- És um bom soldado, sr. Borges. O Novo Exército Farrapo precisa de ti uma vez mais.
- Não seria mais fácil pedir por favor?
Ambos sabiam que não. A guerra travada entre os gauchos brasileiros e os nortistas fora uma guerra de muitas sequelas. As novas tecnologias bélicas, amplamente utilizadas pelas Corporações Unidas da América do Norte no passado, espalharam-se pelo mundo. Os soldados, quando não morriam, ficavam mutilados. E os generais gaúchos, com menos população que o Pan-Brasil, adotaram um expediente assustador: com financiamento do vizinho Paraiso Fiscal Oriental del Uruguay, importaram tecnologia eurasiana de recondicionamento de soldados. Na prática, criavam-se ciborgues com restos de soldados mortos e vivos, controlados a partir de um software de comportamento inserido em uma placa de irídio embutida no cerebelo dos soldados. Por isso Novos Farrapos. Esse era um destino que Getúlio não desejava e faria de tudo para evitar.
- E seu dissesse não?, perguntou Getúlio, como uma voz desesperançada?
- Nesse caso, lhe entregaremos para o Generalato Argentino. Se bem entendo, há uma recompensa pela tua cabeça naquele país, não? O dinheiro oferecido seria muito bem vindo nos nossos esforços bélicos contra o Pan-Brasil...
Não é possível. Getúlio não podia acreditar. De olhos fechados, amaldiçoava sua sorte – ou melhor, a falta dela. Mesmo em sua terra, entre seus irmãos gauchos, o pesadelo de seu passado mercenário voltava a lhe perseguir. Dessa vez, na forma da mais pura e singela chantagem. Enfim, abriu as pálpebras cansadas, mirou secamente nos olhos da Major e disse, com a firmeza de quem não tem dúvidas:
- Quais são as ordens, senhora?
Temia morrer e ser reciclado. Temia sobreviver e ser transformado em Cibrgue Farrapo. Mas temia ainda mais os porões do Generalato Argentino.
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