Atravessar a fronteira e ingressar em território pan-brasileiro não foi nada fácil. As trilhas percorridas por três dias e quatro noites através dos canyons a partir de Cambará do Sul escondiam perigos e eram surpreendentemente bem vigiadas pelos postos de fronteira. Mas a tarefa, quando comparada a invadir a Zona de Segurança Burocrática na Ilha de Florianópolis, mais parecia um passeio no shopping. Esse sim seria o grande desafio.
A noite era fria e úmida. Desde a destruição da porção meridional da camada de ozônio, os hábitos das populacões pasaram por transformações. A vida noturna se intensificou e muitas empresas passaram a adotar o horário comercial durante a madrugada. Durante o dia, apenas locais protegidos por escudos de ozônio, criados a partir de escassas e caríssimas torres de geração, abrigavam algum tipo de movimento ou agito. A noite, portanto, não representaria nenhum auxilio na misão de invadir a residência oficial do Chefe Regional da Policia Ideológica.
Getúlio, quieto e pensativo, preparava-se para a execução da missão. O esconderijo escolhido – uma maloca a apenas alguns quilometros da ponte de acesso à ilha – era sujo e fétido. O local ideeal para todos os ratos e baratas que ali estavam. Por outro lado, Getúlio ficou surpreso com a preparação do Exército Farroupilha. Qualquer equipamento que pudesse pensar necessário estava a sua disposição.
Somente ao preparar um estojo com injeções morfina percebeu que o ferimento em seu ombro não mais doía. Em verdade, desde a noite em que Aline invadiu sua tenda camuflada, durante um descanso noturno na travessia da fronteira, não sentia mais o desconforto.
Deixou seus preparativos de lado. Apoiado numa mesa suja de graxa, de frente para a parede de tábuas de madeira, Getúlio pedeu-se em seus pensamentos. Não conseguia decifrar aquela mulher. Sempre que ela lhe dirigia a palavra, era com arrogância e petulância. Quando lhe dirigia um olhar, era com lascívia e desprezo ao mesmo tempo. Mas naquela noite ela se entregara de corpo e alma. “Será mesmo?” Refletiu, pensou e não conseguiu chegar a nenhuma conclusão. Por certo Getúlio gostara de ter em suas mãos um corpo perfeito como o de Aline. Todavia, o ato sexual em si fora por demais agressivo, de ambas as partes, para que pudesse haver uma entrega – ao menos da alma. E tão logo ficou satisfeita, ela lhe dera um sorriso e, ainda se vestindo, deixou-o sozinho, nu, de costas no chão frio. O que significara aquilo?
- Todos prontos? Sargento Borges?
A voz de Aline, com imponência e altivez habitual, tirou Getúlio de seus pensamentos. Ao se virar, notou que o grupo, formado por mais três soldados de elite e pela própria Major Straussman, estava apenas lhe esperando.
Getúlio então assumiu seu lado militar. Tirou de sua mente qualquer pensamento que não o objetivo da missão. Seu rosto visivelmente perdeu qualquer traço de sentimento ou expressão. Faltavam apenas alguns detalhes. Aplicou sobre o ombro ferido Emplasto Poroso Sabiá com anestésico. Jogou nas costas sua pequena mochila com os equipamentos para a missão. E então, com satisfação e capricho apanhou suas armas. Uma pistola automática Glock-Smith .45 série GS31 com silenciador, para a sutileza. Uma antiga Ithaca 37 calibre 12 com cartuchos explosivos para a grosseria. E o seu revólver Cambará .38 com balas de Césio 37, para seu divertimento.
Na saída do esconderijo, com Getúlio tomando a dianteira do grupo, a Major Aline Straussmann soube que escolhera o homem perfeito.
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