Muito importante para todos os que lerem as postagens: por vezes estarei falando sério, postando opiniões próprias. Outras vezes estarei brincando com opiniões que poderiam ser minhas, mas não são. E por vezes postarei material totalmente fictício, frutos da imaginação e talvez um pouco influenciados pelas experiências acumuladas ao longo dos anos.
Distinguir o que é realidade e o que é ficção fica a cargo de cada um.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 3: Pontos Estratégicos

A Revolução Farroupilha, passados tantos anos, não passava de um símbolo. A história, revista e reescrita sucessivamente por todos os vieses ideológicos se perdera. Sobrou a Internet. Nela o poder do estado jamais conseguiu por suas mãos – e as tentativas foram muitas. Ali, na rede, a imagem dos guerreiros farrapos e de seus ideiais se misturava com o folclore e com o nacionalismo de todos os gauchos.

Os órgãos da Polícia Ideológica Imperial sabiam do problema e, por mais que tentassem reprimir, não podiam evitar que o Tradicionalismo fizesse seu trabalho. Através de movimentos subversivos, a população inteira do sul nascria e crescia condicionada a amar sua terra e a reconhecer no Norte seu inimigo. O mal vinha do Norte. Somente com a separação o Sul poderia crescer e prosperar.

Arnaldo de Sá Magalhães Sobrinho sabia de todo o contexto. Fora nomeado diretamente pelo Ministro da Justiça, Segurança e Bem-Estar para chefiar a Policia Ideológica na Região Sul do Império. Nascido na Bahia, sabia bem como os sulistas ofereciam resistência aos projetos de consolidação do Império Democrático. Na realidade, não fazia questão de o Rio Grande do Sul permanecesse Pan-Brasil. Afinal, o que tinham eles a contribuir? Havia algum tempo os campos de Goiás clonavam gado sulista com sucesso, fornecendo carne bovina com o mesmo sabor e menor preço. Todas as grandes empresas do Nordeste brasileiro, apesar de originárias no Sul, pagavam propinas exclusivamente para representantes do Norte e Nordeste. O Rio Grande do Sul, para Arnaldo – e para muitos pan-brasileiros – não passava de uma chateação.

A ilha de Florianópolis, para onde mudaram-se todos os órgãos imperiais antes localizados em Porto Alegre, era o local perfeito para comadar uma contra-ofensiva aos planos dos gaúchos. A cidade, amplamente protegida pelas tropas que permaneceram leais quando do levante gaúcho, nutria um ódio aos gaúchos que garantiu a soberania sobre a parte central e leste do que outrora fora Santa Catarina. Todavia, coordenar as milicias nortistas além da fronteira e providenciar a entrega de armamento era difícil quando as atenções militares da Cúpula Imperial estavam voltadas para a completa dominação e anexação das novas provincias bolivarianas na Amazônia e Caribe. Por isso o nervosismo da cúpula: como demonstrar força e poder no norte quando o extremo sul declara independência?

Em seu escritório doméstico, Arnaldo, de chambre e chinelas, fumava um legítimo charuto portorriquenho. Na tela de sua estação de trabalho, a insignia imperial apareceu bruscamente, iluminando a quase totalidade da sala, até então mantida no escuro. Uma chamada oficial de superiores aquela hora jamais era algo bom. Arnaldo já havia apresentado uma dezena de relatórios e dados estatísticos – encomendados especialmente para agradar à Cúpula – e ainda assim as especulações de que seria removido de seu cargo ganhavam força. Arnaldo deixou de lado o copo com cachaça e mel, tentou parecer respeitável, e então atendeu à chamada.

- Boa noite, Arnaldinho. Receio que tenha más notícias – a voz, inconfundível, era denunciada pelo sotaque carioca. Na tela de 209 polegadas, era possível visualizar cristalinamente cada uma das rugas de preocupação do Sr. Ministro da Justiça, Segurança e Bem-Estar. - Você sabe que eu tenho um apreço especial por você, não é Arnaldinho?

Arnaldo não estava gostando do rumo da conversa. Sabia muito bem que o apreço existente entre ambos somente seria mencionado em uma conversa oficial se o Ministro estivesse de muito mau humor.

- Fazem apenas setenta e duas horas que enviei meu último relatório sobre o levante gaúcho, Sr. Ministro. Qual seria o problema?

A imagem do Ministro desapareceu abruptamente dando fim à conversa. Foi então que o chefe da Polícia Ideológica, responsável pela supressão do levante no Rio Grande do Sul, percebeu que poderia perder seu pesoço, como qualquer outro burocrata. Após alguns segundos de silêncio, em pleno escuro, a estação de trabalho de Arnaldo era sobrecarregada com dados enviados pelas inteligências das Polícias Ideológicas do Sudeste, Centro-Oeste e Paraguay.

Ao rodar as informações, Arnaldo apertou a campainha vermelha que ficava na parede atrás de sua mesa. O alarme de emergência convocou todos os oficiais da Policia Ideologica e das Forças Armadas da Região Sul. Em apenas alguns minutos, a grande tela de policarbono flexível trazia a imagem de mais de vinte homens e mulheres, todos uniformizados, para a conferência. Arnaldo, aos berros, sem conter o desespero, ordenou:

- Protejam Itaipu. Matem todos os gauchos. Abandonem Florianópolis. Não importa como, não podemos perder Itaipu.
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terça-feira, 15 de setembro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 2: Major Straussmann

As paredes de concreto reforçadas com frias e pesadas chapas de plutânio – uma liga de chumbo e titânio desenvolvida no Leste Europeu quando da Guerra Nuclear entre os Estados Europeus e a Grande Rússia – significavam que Getúlio fora levado até o centro de comando da Brigada Militar. A Brigada, antiga força de policiamento no do estado do Rio Grande do Sul, foi declarada clandestina pelo Ato Institucional nº52 do Império Democrático Pan-Brasileiro. Com o fim da federação, as forças policiais, civis ou militares, dos antigos Estados foram extintas. O poder de policia, como todos sabem, somente podia se exercido pela Policia Ideológica, sob o comando do Ministro da Justiça, Segurança e Bem-Estar, braço forte do Imperador.

Getúlio Borges reconhecia aquela sala. Foi ali, anos antes, que recebeu as divisas de sargento do Novo Exército Farroupilha. Naquela ocasião, se apresentara voluntariamente, por acreditar que um Estado Gaúcho independente seria a melhor alternativa para um povo ignorado e esquecido por nortistas corruptos e ingratos. A sala agora parecia melancólica, sem esperança, exatamente o oposto da última vez que ali estivera.

Os músculos de seu corpo doíam em função das amarras que o prendiam à cadeira de madeira. As cordas, velhas, sujas e poídas, estavam molhadas e cheiravam a urina. Apesar do indigno tratamento recebido, não havia marcas de violência física em seu corpo. “Ao menos não fui espancado”, pensou aliviado Getúlio.

A sala não possuía janelas, mas era bem ventilada por passagens de ar próximas ao teto. Uma única porta dava acesso, e a mesma era guardada por dois soldados enormemente fortes, com uniformes ridículos do século XXI. As tentativas de evocar o passado as vezes não passavam de uma enorme piada de mau gosto.

Foi então que a luz, antes fraca e bruxuleante tornou-se forte e luminosa. O sentimento de abandono da sala foi tomado por um de imponência, na medida em que a única porta se abriu e através dela surgiu a silhueta de uma mulher confiante e poderosa. Getúlio não pode deixar de perceber que quem entrava na sala devia gozar de altos privilégios no exército Farroupilha, pois seu uniforme, de Kevlar BSA-K6 de terceira geração, somente podia ser encontrado nos círculos de oficiais dos mais ricos exércitos do mundo. Sobre seus fartos e belos seios Getúlio pode ler: “Major Straussmann”.

- Eu mandei soltar as amarras do nosso convidado. Alguém pode me explicar por que minhas odens ainda não foram cumpridas?

Os dois soldados que guardavam a porta correram na direção de Getúlio. Os brutamontes que faziam o serviço sujo já tinham aprendido a jamais questionar as ordens da Major Aline Straussmann. Sua voz macia como seda e seu caminhar leve escondiam um agressividade e um rancor que poderia terminar com a carreira de qualquer subalterno. Ou mesmo com a vida.

Aline fitava Getúlio largado e mal acomodado na desconfortável cadeira como se não passasse de um monte de carne e por um momento se perdeu nos pensamentos. Homens para ela não passavam de objetos para a satisfação de seus desejos. Quando retomou o controle de si, arrancou a mordaça que cobria a boca de Getúlio e, suavemente, lhe estendeu um copo de água fria.

- Podes beber. É água reciclada, livre de contaminação.

Getúlio, ainda lerdo após o choque imobilizador muscular (desde seu tempo de soldado nunca entendeu porque aplicar o choque nos mamilos...), deixou escorrer pelo queixo parte da água que bebia. Era boa. O odor lembrava ainda o de suor, mas o sabor era de água limpa. Desde a explosão das pragas transgênicas nos campos, as fontes naturais de água ficaram completamente poluídas por agrotóxicos, produtos químicos e radioativos. Tudo na esperança de acabar com a nova geração de taturanas escarlates, uma espécie mutante que apareceu pela primeira vez na Grande Passo Fundo nas lavouras de soja e milho transgênicos.

Quando finalmente terminou de beber, Aline recolheu o copo d’água. Aos poucos seu olhar e sua expressão facial foi endurecendo. Ao falar, contrastavam em sua voz a firmeza de quem dá ordens e a sensualidade de quem manipula o sexo oposto.

- És um bom soldado, sr. Borges. O Novo Exército Farrapo precisa de ti uma vez mais.

- Não seria mais fácil pedir por favor?

Ambos sabiam que não. A guerra travada entre os gauchos brasileiros e os nortistas fora uma guerra de muitas sequelas. As novas tecnologias bélicas, amplamente utilizadas pelas Corporações Unidas da América do Norte no passado, espalharam-se pelo mundo. Os soldados, quando não morriam, ficavam mutilados. E os generais gaúchos, com menos população que o Pan-Brasil, adotaram um expediente assustador: com financiamento do vizinho Paraiso Fiscal Oriental del Uruguay, importaram tecnologia eurasiana de recondicionamento de soldados. Na prática, criavam-se ciborgues com restos de soldados mortos e vivos, controlados a partir de um software de comportamento inserido em uma placa de irídio embutida no cerebelo dos soldados. Por isso Novos Farrapos. Esse era um destino que Getúlio não desejava e faria de tudo para evitar.

- E seu dissesse não?, perguntou Getúlio, como uma voz desesperançada?

- Nesse caso, lhe entregaremos para o Generalato Argentino. Se bem entendo, há uma recompensa pela tua cabeça naquele país, não? O dinheiro oferecido seria muito bem vindo nos nossos esforços bélicos contra o Pan-Brasil...

Não é possível. Getúlio não podia acreditar. De olhos fechados, amaldiçoava sua sorte – ou melhor, a falta dela. Mesmo em sua terra, entre seus irmãos gauchos, o pesadelo de seu passado mercenário voltava a lhe perseguir. Dessa vez, na forma da mais pura e singela chantagem. Enfim, abriu as pálpebras cansadas, mirou secamente nos olhos da Major e disse, com a firmeza de quem não tem dúvidas:

- Quais são as ordens, senhora?

Temia morrer e ser reciclado. Temia sobreviver e ser transformado em Cibrgue Farrapo. Mas temia ainda mais os porões do Generalato Argentino.


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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 1: Recrutamento

Getúlio acordou com o sol escaldante queimando seu rosto. Na noite anterior cometera o erro de deixar as persianas bloqueadoras entreabertas. Com a destruição da camada de ozônio abaixo do Trópico de Capricórnio, a exposição ao sol era um perigo desnecessário que não precisava correr. Passou uma pomada restauradora a base de células epiteliais sintéticas que encontrara para vender em um fórum ilegal na Internet. A queimadura foi minimizada e as células danificadas pelos raios ultravioletas foram substituídas. Uma maravilha. Tecnologia japonesa.

Sentou na cama e procurou a injeção de morfina que mantinha na cabeceira. A dor da queimadura era muito forte, mas o ferimento a bala que sofrera na noite anterior doía ainda mais. Desde que o Novo Exército Farrapo levantou o Estado Gaúcho do Rio Grande do Sul contra o Império Democrático Pan-Brasileiro, a escalada da violência aumentou em demasia. Os nortistas, como eram chamados os brasileiros, que ainda residiam no novo Rio Grande do Sul quando do fim da guerra organizaram milícias armadas em defesa do Pan-Brasil. Não aceitavam que o povo do sul desejasse apagar seu passado. Em retaliação, o gabinete presidencial da nova república ordenara a prisão de todos os estrangeiros, para identificação e interrogatório.

O ferimento estava sob controle, mas ainda doía. As milícias nortistas, abastecidas com armas contrabandeadas por agentes secretos da Polícia Ideológica Pan-Brasileira pela fronteira com o que antes era o leste do Paraná, usavam munição de segunda linha, o que ao menos tornava a situação mais suportável. Getúlio levantou, evitando que os raios de sol que insistiam em entrar no quarto lhe atingissem a pele e causassem novas queimaduras. Acionou o controle manual e fechou completamente a janela com as persianas bloqueadoras. Tinha ainda três horas para dormir e descansar antes que começasse seu turno no emprego.

Quando finalmente acordou, Getúlio pode perceber que não estava sozinho no quarto. Antes que pudesse alcançar o revólver Cambará 38 de dez tiros que guardara de seu período como Soldado Farrapo, fora dissuadido de tentar qualquer movimento brusco por uma sedutora voz feminina. Somente então percebeu que não estava sendo assaltado. Estava sendo recrutado. Não sabia ainda por quem.

Soube apenas que o imobilizador muscular usado doía ainda mais que um tiro ou uma queimadura por raios ultravioletas.



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