Muito importante para todos os que lerem as postagens: por vezes estarei falando sério, postando opiniões próprias. Outras vezes estarei brincando com opiniões que poderiam ser minhas, mas não são. E por vezes postarei material totalmente fictício, frutos da imaginação e talvez um pouco influenciados pelas experiências acumuladas ao longo dos anos.
Distinguir o que é realidade e o que é ficção fica a cargo de cada um.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O Causídico - Episódio 2: Cartão de Visitas

Andando apressado pelos corredores da Justiça do Trabalho, Paulo sentia o nervosismo comum aos novatos. Estava em cima da hora para a sua primeira audiência como profissional autônomo. Sentia-se estranho, como se todos os demais advogados e estagiários presentes ao fórum trabalhista o estivessem olhando e, pior, julgando. Vestia um quase confortável terno preto de microfibra, desses simples e baratos de cento e noventa e nove reais, comprado na véspera com a intenção de impressionar seu cliente. Os sapatos eram os mesmos de sua formatura, mas estavam bem polidos. Na mão esquerda carregava a maleta de couro preta, já bastante gasta, que foi de seu falecido pai.

Chegou ao sexto andar do prédio dois e foi direto para o banheiro. Segundo seu relógio, ainda tinha cinco minutos antes da audiência. Para os padrões de prédios públicos com grande movimento de pessoas, aquele banheiro até que era razoavelmente limpo. Paulo de Tarso procurou um lugar para largar a sua pasta e, então, após retirar o relógio de pulso, abriu a toneira e lavou o suor do rosto. A sensação da água fria o fez relaxar e permitiu que readquirisse a tranquilidade necessária para encarar a audiência. Com o rosto ainda molhado, apoiado com as mãos na pia, olhou fixamente através do espelho nos próprios olhos.

- Eu consigo – disse, enfim, para si mesmo, pronto para voltar ao saguão de espera do andar. Somente então percebeu que o banheiro não tinha toalhas de papel...

Ainda com o rosto molhado, o apito agudo dos auto-falantes soaram. Em seguida, o pregão para sua audiência foi feito por uma suave e agradável voz feminina, que pronunciava cuidadosamente os nomes das partes.

- Atenção para a audiência das oito horas e trinta minutos. Décima quinta Vara do Trabalho. Sr. Clóvis Abreu Dilcant, reclamante, e Pasquali Empreendimentos e Construções S.A.


Às pressas, secando o rosto na manga do terno novo, dirigiu-se para a sala de audiências. À porta, seu cliente o esperava, com a suspeita nos olhos típica dos que sabem ter contratado um advogado inexperiente.

- Pensei que não virias...

- Desculpa-me, seu Clóvis. Não acontecerá de novo. Podemos entrar?

Então, aconteceu. Ao passar pelas portas da sala de audiência, os anos de estudos na faculdade fizeram valer a pena. Não havia naquela sala nenhuma pompa das cortes norte-americanas representados no filmes de Hollywood. Ainda assim, Paulo sentia no ar a atmosfera solene. Aquela sensação lhe acompanharia por anos na profissão, tão boa que era. Na sala, apenas duas grandes mesas formavam um “T” no centro do ambiente. No centro da parte superior do “T” estava sentada a juíza, com idade aparentemente próxima a de sua mãe. Ao seu lado, a jovem secretária, responsável pela redação da ata e a quem muito provavelmente pertencia a voz no auto-falante. Junto às paredes, diversas cadeiras avulsas acomodavam outros advogados, todos à espera de suas próprias audiências. A presença desses colegas, por um momento, trouxe de volta a insegurança e timidez que tentara espantar no caminho.

Somente então, mirando para o outro lado da mesa onde sentam-se as partes, que sentiu suas mãos suarem mais que o esperado. Paulo reconheceu instantaneamente o advogado da parte contrária. Sentiu-se levemente intimidado e, de olhos fechados, fez um rápida prece mental a São Paulo de Tarso, em busca de tranquilidade. “Eu consigo.”

- Doutor Raimundo, que prazer revê-lo em minha sala de audiências – a magistrada tinha na voz a rouquidão inconfundível de quem fumou desde a juventude. - A que devo a honra da presença do mais destacado jurista vivo do país? Afinal, esta é apenas uma audiência inicial.

- Saudades dos velhos tempos, Doutora Raquel. As vezes, mesmo um advogado velho como eu – os dois riram nesse momento, pois Raimundo Flach era um veterano, certamente, mas não velho – sente saudades da adrenalina de realizar uma audiência. E também para conhecer novos rostos, como o do jovem doutor aqui.

Raimundo Flach era o principal advogado do escritório que levava seu nome. Todos os estudantes de Direito sabiam quem era Raimundo Flach, autor de diversas obras de prática processual. No início do semestre em que se Paulo se formara, Raimundo foi o convidado para dar a aula magna de abertura do semestre na Faculdade Livre de Porto Alegre. O experiente advogado, apoiado com os cotovelos à mesa central, agora fitava cordialmente Paulo, que, sem saber como se portar, sorria o mais amarelo dos sorrisos.

- Seu nome, doutor?

Paulo foi salvo daquele momento de constrangimento pela secretária da juíza. Atrás de redondos óculos, os belos olhos castanhos da jovem servidora entregavam o seu próprio nervosismo. Paulo até tentou espiar o nome da bonita serventuária, mas conseguiu apenas ler, em uma tarja verde afixada na extensão diagonal do crachá “Em Treinamento”.

Por alguma razão inexplicável, ao dar seu nome e número de inscrição na Ordem dos Advogados, Paulo sentiu uma confiança crescer em seu peito. Instintivamente, mudou sua postura na cadeira, deixando de lado a timidez. Ao seu lado, seu cliente percebeu a mudança do advogado.

- E então, doutor – a juíza, ignorando Paulo, dirigiu-se para Raimundo Flach – contestação escrita com documentos?

O coração de Paulo acelerou. Aquilo estava errado. Por lei, conforme dita a Consolidação das Leis Trabalhistas, ao início de todas as audiências iniciais, sobretudo no rito ordinário, deverá ser propiciada uma tentativa de conciliação, de realização de acordo. Ao invés disso, a magistrada, sem nenhuma solenidade, atropelara a audiência. A boca de Paulo ficou seca, sua mente, a mil, tentava coordenar palavras de forma que, quando ditas, fizessem sentido. Olhando ao redor da sala, Paulo tinha a sensação de estar em câmera lenta. A adrenalina em seu corpo subiu, elevando a batida de seu coração e aguçando seus sentidos ainda mais. Suas mãos suavam, seus pés batiam os calcanhares no chão alucinadamente. Sabia que teria que tomar a palavra e, assim, finalmente estrear com estilo na profissão.

- Com licença, Excelência, mas a senhora está se apressando ao pular as tentativas de conciliação.

Era como se raios saíssem dos olhos da magistrada. O cenho franzido e o olhar fulminante recaíram sobre Paulo. Os cabelos da nuca de Paulo se eriçaram. De repente, na medida em que a juíza do trabalho ruborizava sua face, a sala de audiências foi tomada por uma tensão, que fez com que todos os demais presentes fixassem seus olhos naquele novel e verde advogado da parte reclamante. Paulo, todavia, manteve-se impassível em sua postura, graças à adrenalina liberada.

- O escritório do doutor Raimundo não costuma realizar acordos nos processos de seus clientes. Então, por praticidade, eu passo adiante nas formalidades. Você saberia disso, tivesse mais experiência. - o tom de voz era de puro escarnio. Todos os presentes, inclusive Paulo, puderam perceber a inflexão da voz ao pronunciar “você”, como se estivesse a Juíza a fazer pouco do procurador.

- Ainda assim, Excelência – Paulo entrelaçou os dedos das mãos, em uma última tentativa de disfarçar o tremor provocado pelo nervosismo – cabe ao procurador da Reclamada recusar a conciliação, e não ao juízo deduzir sua recusa.

As últimas palavras saíram fracas. A garganta começava a doer, em virtude da secura da boca. A coragem de Paulo, fruto de sua inexperiência, começava a ceder. A magistrada não escondia sua irritação. Ao seu lado, a jovem funcionária não tirava os olhos do teclado do computador a sua frente, nitidamente apavorada com o humor da juíza.

Coube ao experiente jurista, com sua voz grave porém cordial, quebrar a tensão da sala.

- Ora, Raquel, dá uma chance para o jovem causídico fazer sua proposta.

- Pronto, senhor Schirmer, faça sua proposta. Satisfeito?

Era agora. Foi para este momento que ensaiara repetidamente em frente ao espelho. A reclamatória dependia da produção de prova pericial e testemunhal. Mas o reclamante, em sua época de mestre de obras contratado da reclamada, acumulou apenas inimizades. Paulo sabia que dificilmente encontraria testemunhas qualificadas para comprovar o direito do obreiro. E depender apenas da perícia técnica podia significar uma condenação abaixo do realmente devido. Clóvis, o reclamante, botou sua mão esquerda sobre o braço direito de Paulo e, olhando fundo em seus olhos, passou-lhe a tranquilidade de que tanto precisava. “Eu consigo”.

- O reclamante propõe acordo em vinte e cinco mil reais.

Paulo pronunciou as palavras de forma resoluta, convicta. Nem por isso Raimundo Flach deixava de rir. Tanto o veterano colega quanto o representante da empresa olhavam agora para o causídico como se tivesse ele feito papel de bobo.

- Meu jovem, é claro que não aceitamos esse acor...

- Pensa bem, doutor – Paulo interrompeu o famoso jurista e, então, pôs-se a falar o texto ensaiado. Seus olhos, todavia, eram fixos no preposto da empresa. - foram mais de quinze anos trabalhando em canteiros de obras da Pasquali Construções. Apesar do reconhecimento do vínculo, não eram pagas horas extras, adicional de insalubridade... Nem o FGTS era recolhido corretamente. Nos últimos anos, nem mesmo o valor mínimo da categoria vinha sendo respeitado, sem contar outras vantagens previstas nos dissídios coletivos.

- Ainda assim, não há como...

Paulo interrompeu uma vez mais. E uma vez mais falou dirigindo-se ao representante da reclamada:

- Haverá uma perícia, na qual vocês irão sucumbir. São três mil reais gastos numa prova que será a nosso favor. Fora as custas, pois em processos semelhantes vocês têm perdido. Então por que não fazemos um acordo agora, em, digamos, duas parcelas de doze mil (dou mil reais de desconto) e eliminamos os juros de um por cento ao mês e correção monetária? Se bem lembro, em processo parecido, vocês desembolsaram mais de cinquenta mil reais, após sete anos de processo. Ou seja, metade em juros e correção. E assim não entramos no mérito do dano moral...

- A proposta não é ruim, doutor Raimundo. - A juíza, recomposta, tomou a palavra, para a grata surpresa de Paulo.

A expressão amigável de Raimundo Flach era agora séria. Paulo assistia ao preposto gesticular freneticamente enquanto cochichava ao ouvido do procurador. Clóvis, aliviado com o desempenho de seu procurador, sentava de braços cruzados em sua cadeira.

- Quatro parcelas de sei mil reais. - A voz de Raimundo era de consternação. Saíra do escritório para divertir-se em audiências e já na primeira estava sendo pressionado por um novato.

- Fechado. - Todos, sobretudo a bela secretária, sorriam aliviados com o desfecho. Marotamente, com um sorriso nervoso e amarelo, Paulo buscou forças para terminar seu ato: - Mais dez porcento de AJ, né doutor?

AJ (AJG) é a gíria para os honorários advocatícios a serem pagos pela parte devedora. Paulo somente apresentou a carta credencial do sindicato, que lhe daria direito aos honorários, após sacramentado o acordo. O grande doutor Raimundo não disse nada, apenas anuiu de cabeça.

Encerrada a audiência e lavrada a ata, Paulo despediu-se de seu cliente. Antes que chegasse ao elevador, sentiu uma mão firme em seu ombro. Virou-se. A sua frente estava o próprio Raimundo Flach, com a mão direita esticada e um cartão de visitas entre os dedos indicador e médio.

- Pega, filho. Quero que vás ao meu escritório e faças uma entrevista. Gostei do teu estilo.

Ainda surpreso, Paulo respondeu:

- Já fui uma vez, senhor. E não recebi retorno algum.

- Vai de novo. Dessa vez será diferente. Eu te garanto.

E assim o baixinho porém imponente Raimundo Flach saiu do saguão do sexto andar em direção às escadas.

Com o fino e caprichado cartão de visitas em mãos, Paulo de Tarso sentiu a felicidade preencher sua alma.

“São Paulo de Tarso, eu consegui!”

**********************

Nenhum comentário:

Postar um comentário