Sempre fui nostálgico. Gosto de sentar, no escuro da noite, em meu sofá e vasculhar nos cantos ainda mais obscuros da mente memórias passadas, na vã tentativa de revivê-las, compreendê-las, exorcizá-las. Minha esposa costuma dizer que tenho "memória de elefante", já que certas coisas jamais esqueço, como acontecimentos, diálogos, lugares, experiências (táteis, olfativas, auditivas) - ou, ao menos, relembro de forma muito mais hábil que os demais. Meus amigos próximos diriam que esta memória se justifica pelo tamanho da cabeça...
Fato é, nada obstante, que este gosto por reviver meu passado é muito marcante através, sobretudo, da música. Disto advém um certo prejuízo meu, pois ao ficar preso ao passado, não me abro ao novo. Tenho imensa dificuldade em apreciar novas bandas e novos gêneros, na medida em que volto para trás, atrás de bandas desfeitas, mortas, e sonoridades já esquecidas pelas massas. De certa forma, a música é uma excelente metáfora...
O ponto de toda esta introdução um tanto quanto maçante - e nem por isso menos honesta - é que, em mais uma noite com fones de ouvido e computador ao colo, coloquei para o YouTube tocar aleatoriamente músicas dos anos 90. (Lembre-se, quando eu digo músico, digo rock. E quando digo Rock, aceito também muitos de seus subgêneros). E, surpresa, Blind Melon entra na playlist.
No Rain tocou. E, apesar de eu estar em outra tela, com algo fútil (quiçá inútil) a fazer, minha mente viajou de volta ao ano de 1993, ano seguinte ao ano de lançamento (sim, precisei consultar o ano no Google).
Aquele foi meu último ano de Colégio Batista, onde fui alfabetizado, e fiz as primeiras grandes amizades. Meu melhor amigo até então havia comprado o álbum homônimo à banda e ela se tornou a sua porta de entrada para o rock'n'roll. No Rain se tornara sua música favorita. E não para menos: era a música de trabalho, com uma batida vibrante, envolvente, que tocava diariamente nas rádios (quando ainda se podia ouvir música boa em rádios FM e o futebol se ouvia apenas no AM) e com videoclipe emplacando com frequência na MTV.
Foi então que, nos seus primeiros acordes, marcantes e facilmente reconhecíveis, viajei instantaneamente para uma tarde de domingo em que jogávamos videogame - SNES - em sua casa e No Rain tocava em loop constante. Uma tarde divertida com uma música bacana, em boa companhia.
Mesmo com minha memória, não sei dizer quantas vezes mais ouvi No Rain depois daquilo. Muito poucas. A banda sofreu com a morte de seu vocalista. Os anos 90 viram a revolução grunge chacoalhar o Rock. E eu mudei de escola, fazendo novas amizades e, lentamente, perdendo contato com meus antigos melhores amigos. Talvez por isso, a cada vez que a música tocava ao acaso em uma festa ou em alguma rádio perdida no dial, sempre - sempre - viajei no tempo até aquela tarde ensolarada (sem chuva, perdoe-me o trocadilho) em que ficamos jogando Super Nintendo. Minha mente voava para lembrar do melhor amigo.
No Rain, portanto, adquiriu uma ligação afetiva. Eu sempre encarei a música alegremente, por me lembrar daquela amizade, que resistiu, às duras penas, até mesmo ao início da faculdade, tantos e tantos anos depois.
Mas em 1993 eu não entendia patavinas. Na época, eu não era capaz de distinguir as palavras cantadas, e não imaginava o que significavam as letras das músicas de que eu tanto gostava e ouvia. Me conectava com o ritmo e sonoridade. O exato oposto de hoje em dia, em que me conecto às músicas, e ás memórias, muito mais pelo significado das poesias ocultas dentre riffs e ataques violentos às caixas das baterias.
Quando ouvi, cantadas, as primeiras palavras do primeiro verso (All I can say...), o resgate automático daquela memória, e com ela todo o significado daquela amizade, me fez sorrir. Afinal, o videoclipe, colorido, evocando ao imaginário hippie sessentista, transmitia uma expectativa de alegria e otimismo, como o da menina fantasiada de abelha, que ao final salta e dança em um quase-êxtase junto a outras "abelhas". Exatamente a alegria daquela memória a que ela me remetia.
Contudo, à medida que a música foi se desvelando, algo se perturbou em minha alma. A batida e melodia de No Rain, cativante e impregnada de raios de sol, são um contraponto perturbado ao que então meus ouvidos ouviram. A letra - antes um legítimo "enrolation" de meus tempos de guri - se desnudou, e com a sua compreensão, o horror de perceber que há, ali, o espelhamento de uma alma atormentada, sofrida e depressiva.
All I can say is that my life is pretty plain
I like watchin' the puddles gather rain
And all I can do is just pour some tea for two
And speak my point of view but it's not sane
It's not sane
I just want someone to say to me, oh
I'll always be there when you wake, yeah
You know I'd like to keep my cheeks dry today
So stay with me and I'll have it made
And I don't understand why sleep all day
And I start to complain that there's no rain
And all I can do is read a book to stay awake
And it rips my life away but it's a great escape
Escape, escape, escape
All I can say is that my life is pretty plain
You don't like my point of view, you think that I'm insane
It's not sane, it's not sane
I just want someone to say to me, oh
I'll always be there when you wake, yeah
You know I'd like to keep my cheeks dry today
So stay with me and I'll have it made, I'll have it made, I'll have it made
Oh, no, no, you know, I really wanna, really gonna have it made
You know, I'll have it made
E assim, em minutos, No Rain deixou de ser aquela canção feliz para se tornar uma nova, triste. Exatamente como a lembrança, transmudada do amarelo para o preto, pois me faz pensar que são mais de quinze anos sem eu ter qualquer notícia daquele que, por muitos anos, foi meu melhor amigo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário