Não importa o quanto sejamos bravos, nunca estaremos preparados para o momento final. Para a morte. A procura de religiões muita vezes representa um meio de lidar com a dor – da perda de um ente amado próximo ou mesmo de encarar a derradeira verdade. Mas seja como for, o ser humano é apegado demais à vida.
Foi no início do inverno que Carolina sentiu as primeiras dores. Em sua juventude, foi uma mulher de fibra, à frente de seu tempo. Ainda cedo ficou órfã. Juntamente de sua irmã menor, foi para um orfanato público. Deus, como Carolina odiava aquele lugar. Quando moça, durante o curso de magistério, sentiu aquelas mesmas dores. Lembrava-se perfeitamente. Pareciam cólicas, como se facas atravessassem o interior de sua barriga deixando cortes extremamente sensíveis. Agora, muitos anos depois, no auge dos seus oitenta e cinco anos, as facas afiadas e pontiagudas voltaram a dilacera-la por dentro.
A manhã, ainda fria, não era nada convidativa. A geada no patio da casa era a prova visível do frio que persistia aos primeiros raios de sol. Ainda assim, com frio e com dores, Carolina decidiu sair da cama. As dores eram familiares. Já experimentara algo assim antes. E esperava resolver a situação como da outra vez: com um bom e forte chá. Sentou na cama, botou as chinelas e levantou-se para vestir seu chambre de chifom que ficava convenientemente colocado sobre o encosto de uma cadeira antiga de estofado aveludado ao lado da cama. A um piscar de olhos, acordou na cama do hospital.
A situação era desorientadora. Teria ela sonhado? Estaria sonhando naquele exato momento? Tentou mover-se. Erro. A dor que sentiu em seu ventre era lacerante. Era como se as facas, mais afiadas que nunca, finalmente tivessem conseguido atravessar sua carne, expondo seu interior para o mundo, numa explosão de dor excruciante. As lágrimas de dor embaralharam sua visão. Tentou gritar, mas engasgara. Em sua boca, um tubo ingressava até sua garganta – ou seria traqueia? – jogando o ar diretamente em seus pulmões. Seus braços eram cravejados de pequenas agulhas que lhe injetavam soros, remédios e mais outras coisas que não sabia dizer. Naquela confusão, a dor física não era nada comparada à súbita saudade de seu falecido esposo. Ele, como médico que fora, saberia lhe explicar e lhe reconfortar. Enfim, Carolina fez a única coisa que estava a seu alcance: dormiu.
Seus sonhos eram confusos. Como uma viagem ao passado, viu-se jovem, bonita. Recém chegada na cidade, começou a lecionar. Regozijava-se com a admiração que as pessoas tinham para com as professoras. Mas sofreu com o preconceito da época contra as mulheres que ganhavam seu próprio dinheiro e supriam seu próprio sustento seu um homem por perto. Foi assim, numa acalorada discussão com algum membro machista do clube que conheceu Carlo, seu marido. Agora podia vê-lo novamente, após tantos anos. Sua morte lhe deixara uma cicatriz na alma, mas agora podia sentir sua presença. Estava lindo. Vestido com o uniforme de gala militar de sua formatura de oficial do exército, antes mesmo de cursar a faculdade de medicina na capital, ele era como um anjo envolto a uma reconfortante e acalentadora luz branca a lhe proteger.
As lembranças foram ficando mais difíceis, e uma voz lhe tirou das nuvens. Percebia nitidamente agora. Era como um choro de bebê. De sua única filha, Agata. E Agata estava falando. Carolina pode então sentir as dores novamente. Mais forte. Não era mais um sonho. Sua filha estava ao seu lado, os olhos vermelhos, as bochechas brilhando de lágrimas ainda por secar. Com dificuldade, Carolina abriu os olhos. Não entendia a razão, mas enxergava ainda pior do que normalmente. Mas foi suficiente para perceber a presença do médico, alto, de pele negra contrastando no jaleco branco. E então ouviu.
As dores que Carolina sentia eram realmente de facas. Bisturis, para ser exato. Ao que podia entender, passara por uma cirurgia. Mas por quê? Pouco importava agora. Sua filha, a quem não via há alguns anos, estava lá, ao seu lado, a proteger-lhe.
De algum lugar de sua alma, tirou forças para permanecer acordada. Lutava contra o delírio, a dor. Sentiu-se em um daqueles antigos filmes que assistia no cinema, de bancos de madeira e projetor preto e branco. Ao fechar os olhos, via de um lado seu marido, todo brilhante. Ao abri-los, via sua única filha, sangue de seu sangue, ao outro lado, na sombra do quarto de luzes apagadas. Sentia todo o amor de uma vida confluir para aquele momento.
De inopino, Agata debruçou-se sobre a mãe. Fosse possível e Carolina até sentiria-se sufocada. E então percebeu que sua filha chorava copiosamente. As lágrimas brotavam de seus olhos de forma avassaladora, até o ponto de pingarem sobre a face de Carolina. Sua voz estava embargada pelo choro,e por isso mesmo parecia um chiado. Mas havia algo mais. Carolina percebeu a dor na voz de Agata, e as palavras que se derramaram deixou tudo claro. Entendeu enfim o que sua filha tentava lhe dizer nas entrelinhas.
Os olhos azuis como piscinas em oásis de Carolinas transbordaram quando sua filha, soluçando, acenou para o médico. Não podia ver, mas sabia que lhe estava sendo administrado um “gerenciamento de dor por morfina”. Chegara a hora.
Durou pouco. Carolina sentiu então o calor. Amor. Abraçava seu marido e sua filha. E não sentiu mais dores.
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