Muito importante para todos os que lerem as postagens: por vezes estarei falando sério, postando opiniões próprias. Outras vezes estarei brincando com opiniões que poderiam ser minhas, mas não são. E por vezes postarei material totalmente fictício, frutos da imaginação e talvez um pouco influenciados pelas experiências acumuladas ao longo dos anos.
Distinguir o que é realidade e o que é ficção fica a cargo de cada um.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os Ipês da Beira da Estrada

Certas coisas não são como nos filmes.

A viagem de Carlos estava marcada há mais de semana, mas mesmo assim ela não parecia real. Passara os últimos dias debatendo com seus colegas de trabalho sobre a real necessidade de fazer os mais de quatrocentos quilômetros – oitocentos, ida e volta – que separam a capital da fronteira oeste apenas para conferir documentos de um processo. Todos, sem exceção, lhe diziam:

- É um processo importante, de nosso mais importante cliente. É necessário ir.

Vencido, porém não convencido, Carlos ainda não desejava encarar a estrada. Muito embora rodasse mais de mil quilômetros todos os meses a trabalho, aquela viagem não lhe parecia certa. Havia algo no fundo de sua mente que lhe dizia “fica em casa com teu filho, é melhor”. Mudou de tática. Novamente abordou seus colegas e seus superiores. Talvez outra pessoa pudesse ir até lá ver o tal processo. Não haviam contratado um cara novo justamente para que Carlos ficasse mais tempo dentro do escritório, cuidando de assuntos mais importante?

- Mas este processo na fronteira é muito importante – diziam os colegas de Carlos. - Tu és quem mais tem experiência sobre este assunto. Tu és a melhor indicação para ir até lá e ver estes documentos.

E assim, sentindo-se derrotado, Carlos foi dormir na véspera. O coração pesado, o carro abastecido.


Acordou cedo. Muito cedo. Cinco da manhã. Tomou o café da manhã reforçado, pois conforme seus planos, o almoço estava ainda muito longe. Tomou um banho apenas morno, para despertar. Foi até o berço de seu filho recém-nascido e, após um longo e triste suspiro, deixou um beijo e um “o pai te ama” na testa do guri. Já com os sapatos calçados, foi até a cama, onde sua esposa dormia leve para despedir-se.

- Vai com cuidado, meu amor – ela disse

- Não te preocupas. Volto antes do jantar.

Ainda estava escuro quando saiu. Quando o sol nasceu, já havia percorrido quase cinquenta quilômetros. A estrada parecia passar lentamente. Por mais que acelerasse, seu destino ainda estava muito distante. Sozinho, deixou sua mente voar. Porém seus pensamentos refletiam a angústia dos dias que antecederam a viagem e a infelicidade de deixar seu filho e esposa. Não eram eram pensamentos agradáveis.

Na estrada, com mais de setecentos quilômetros pela frente naquele dia nublado, Carlos decidiu mudar de atitude. Botou um bom e velho rock 'n' roll a tocar no volume máximo. Empolgado, soltou o grito que estava preso em sua garganta. Acelerou.

A viagem parecia ter tomado uma nova dimensão. Mesmo com o aumento de veículos na estrada, Carlos pensou que talvez pudesse apreciar a viagem. Após duzentos quilômetros de chão, Carlos estava deliciado com a imagem dos ipês-amarelos floridos de ambos os lados da estrada, que formavam um túnel dourado. Por alguma razão, Carlos sempre gostara dos ipês-amarelos ao longo das estradas gaúchas. Algo a ver com as lembranças de um tempo em que viajava apenas no banco de trás do carro de seus pais para visitar seus avós. Um tempo mais simples, mais feliz.

- É, exclamou Carlos em voz alta, mesmo sozinho no interior do veículo, acho que realmente posso curtir essa viagem.

E assim, finalmente, relaxou.

Abriu os olhos. A adrenalina tomava conta de seu corpo. Seu coração batia acelerado; A escuridão não era total, típico de quando os raios do sol tentam vencer as cortinas do quarto. Ainda estou dormindo? Foi tudo apenas um sonho? Sem enxergar direito por causa dos olhos míopes, buscou seus óculos. E então percebeu: tudo fora real.

Dentro do carro, Carlos finalmente se orientou. Com as pernas para o ar, soltou o cinto de segurança. Preciso manter a calma. Primeiro, tenho que achar uma saída. Lutando contra seus instintos, Carlos tentava não praguejar. O carro capotado era, agora, o menor de seus problemas. Estou ileso, estou com vida, isso é que importa.

Enquanto escalava os bancos para sair pela porta de trás do lado do carona, Carlos reprisava em sua mente, de forma involuntária, cada segundo do acidente. Finalmente havia relaxado, observando os ipês ao lado lado da estrada. Menos de dois quilômetros após, deparou-se com uma longa e acentuada curva. Não conhecia a estrada, então percebeu que a velocidade com que ingressara na curva era acima do recomendável. O carro perdeu levemente a traseira – um problema que ele reiteradamente reclamava a seus amigos, culpa do câmbio automatizado do carro, que não usava frio motor. Dentro da curva descobriu um carro muito mais lento em sua frente. Para não colidir na traseira do outro veículo, viu-se obrigado a frenar mais forte. Então, tudo aconteceu.

Ao pisar com força no freio, Carlos sentiu que perdera totalmente o controle do carro. Vou rodar no meio da pista, dentro de uma curva em uma das estradas de maior movimento do interior. Preciso consertar isso. A adrenalina fizera com que tudo se movesse lentamente. Seu raciocínio, a mil, lhe dizia exatamente o que fazer. Se seria capaz de executar, no entanto, Carlos não sabia.

Soltou o freio, acelerou levemente, e torceu a direçãoPreciso ir para o acostamento. Um carro que venha no outro sentido, e estou morto.

Impressionado com a capacidade de racionar tão rápido e buscar soluções para aquela situação desesperadora, Carlos levou seu carro para o acostamento, onde tentava dominá-lo até pará-lo completamente. Ufa, vou conseguir. Que cagaç...

O que se seguiu Carlos não previa. Não acreditava. Em uma fração de segundos o rock 'n' roll silenciou-se, substituído pelo seco som de metal se retorcendo e vidro quebrando. O carro tombara na cabeceira da pista sobre o próprio peso e devido à sua própria altura. Uma volta. Duas. Diferentemente de filmes de Hollywood, Carlos não viu nenhum flashback ou trailler com momentos de sua vida. A mochila, carregada de processos, atingiu Carlos na têmpora, arrancando-lhe os óculos da face. Uma sensação de vazio lhe preencheu o peito. Mais que isso, tristeza. Foi quando o carro parou, travado contra um ipê, recém florido após bater com a capota contra o tronco da árvore, que veio a escuridão. Tudo foi tão rápido que Carlos teve tempo de apenas um pensamento:

- Puta merda!

Já fora do carro, Carlos olhava para si, ileso. Suas pernas tremiam, em razão da alta adrenalina. Puta merda! O choro, preso lá no fundo da alma, irrompeu quando o medo de nunca retornar para sua mulher e filho lhe tomou conta. Puta merda! Mas, para sua surpresa, o choro durou pouco. Seu sentimento era, sobretudo, de felicidade. Estranhamente, depois de tudo o que passara, depois de uma semana lutando contra aquela viagem agourenta, Sentado sob os galos amarelos do ipê que parara seu carro, Carlos sorria, feliz como nunca esteve antes.

Carlos estava vivo. Sentia-se vivo. E sabia que era uma bênção poder retornar para casa antes do jantar. 

2 comentários:

  1. Ótimo como sempre, alemão! Tem é que continuar a saga do gaúcho das sombras, isso sim!

    PS: Tem um "frio motor" ao invés de "freio motor" ali...

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  2. os errinhos de português acontecem...
    alguns são easter eggs (juuuuuuuuura)

    Valeu pela força.

    GdS ainda não tem previsão de retorno, pq a intenção é voltar com uma temporada completa, hehe

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