Muito importante para todos os que lerem as postagens: por vezes estarei falando sério, postando opiniões próprias. Outras vezes estarei brincando com opiniões que poderiam ser minhas, mas não são. E por vezes postarei material totalmente fictício, frutos da imaginação e talvez um pouco influenciados pelas experiências acumuladas ao longo dos anos.
Distinguir o que é realidade e o que é ficção fica a cargo de cada um.

sábado, 21 de abril de 2012

Gaucho das Sombras - s02e03 - Diplomacia

 O Embaixador ainda tentava entender como tudo virara um caos em apenas alguns segundos. Acelerando a Yamaha 7500iE modelo Dakar, preparada para o caso de fugas de emergência, revivia aqueles momentos enquanto olhava aguçadamente em diante, na esperança de enxergar alguma patrulha caminera castelhana. Instintivamente, tocou com a mão esquerda no bolso de seu terno – arruinado pelas explosões – para garantir que o fruto de toda a operação estivesse em segurança. Ao sentir que a embalagem especial de armazenamento de tecidos biológicos estava consigo, o Embaixador voltou a acelerar. De pouco adiantaria escapar dos atacantes que praticamente destruíram o frigorífico se o maior inimigo era o sol e a radiação UV do Sertão Pampeano.

Ajustou os óculos protetores com lentes ShadowLux (parte do equipamento de rally que acompanhava a motocicleta) e começou a relembrar o acontecido. El Carnicero já tinha feito seu trabalho e estava no começo da diversão. Getúlio Borges, é bem verdade, não soltara um grito sequer durante o procedimento, o que apenas deixou el Carnicero ainda mais furioso. O Embaixador não podia deixar de apreciar o espetáculo de tortura imposta ao riograndense. Assim como não podia deixar de reconhecer que um exército construído a partir de aprimoramentos genéticos a partir das células zigóticas de Getúlio tinha o potencial de dominar impérios...


Foi então que as luzes se apagaram, as paredes tremeram, parte do teto cedeu e o som de explosão tomou conta do recinto. Imediatamente as luzes de emergência na sala frigorífica acenderam-se, apenas para o Embaixador, caído no chão em razão do impacto, vislumbrar Getúlio, livre das correntes que lhe mantinham suspenso como as carnes de gado. El Carnicero estavá lé, deitado ao seus pés, morto.

O Embaixador viu Getúlio vindo em sua direção. Uma imagem que demoraria anos a se pagar de sua memória. Nu, coberto de sangue dos ferimentos abertos e de hematomas pelo corpo, arrastando a perna esquerda em razão da dor. Getúlio tinha em seus olhos sede de morte. E o argentino não teria a sorte de uma morte rápida como seu lacaio, sabia.

Foi a segunda explosão que lhe salvara. O impacto abriu um buraco na parede e fez com que os detritos se depositassem sobre Getúlio. Com o sargento parcialmente soterrado, o Embaixador tratou de fugir – não sem antes pegar a embalagem projetada para conservar aquela iguaria biológica.

Em meio às ruínas do esconderijo, passou por seus soldados, que inutilmente tentavam armar uma linha de defesa. Antes mesmo de ligar a Yamaha – o mais veloz veículo a disposição naquele momento – viu as tropas argentinas serem mortas. Nem mesmo conseguiu ver quem eram os atacantes, mas sabia quem queriam salvar.

Agora, sob o sol tórrido, começava a pensar se não teria sido melhor se deixar matar por Getúlio. Inteligente como era, o Embaixador sabia que caso sobrevivesse, ainda teria que lutar contra algum carcinoma, que fatalmente surgiria após aquela inóspita fuga.

Suas mãos queimavam pela radiação solar ao volante do motoveículo. As bolhas começavam a estourar, causando dores lancinantes. Pelo retro-vídeo-visor ocular de projeção retinal dos óculos de proteção da motocicleta – o qual era conectado por conexão sem fio com os computadores e câmeras da Yamaha – o argentino viu a poeira de seus perseguidores se aproximar perigosamente. Sabia que em algum momento atravessaria a fronteira, mas duvidava que isso impediria seus inimigos de seguirem no seu encalço.

Sua boca estava seca, de tanta sede. Estava prestes a desistir, mas ao sentir o pacote que levava em seu bolso revitalizou as energias. Foram anos de planejamento e desenvolvimento para que o Generalato Argentino pudesse enfim por em prática o ambicioso projeto de construir o melhor exército que a biogenetecnologia poderia garantir. Planos que foram adiados por causa das irresponsáveis e imponderadas aventuras de um Getúlio Borges mercenário. Os eventos acontecidos no Uruguay ainda hoje eram motivo de fúria entre os generais castelhanos. Agora, devolver a seu país a expectativa de um exército imbatível, e ainda por cima vingar-se – sem bem que não completamente – do maior desafeto de La Nación, faria do Embaixador o mais elevado homem no corpo militar-diplomático do Generalato. O poder, enfim, estaria ao seu alcance. Poder político, o maior de todos.

Foi em volto a esses pensamentos que deparou-se com uma barreira construída sobre o leito seco do Rio Uruguai. Veículos de blindagem solar e com geradores de escudo de ozônio traziam meia dúzias de soldados e mais outra dezena de ciborgues farrapos em um largo perímetro de contenção. A fronteira estava fechada. O Embaixador não poderia simplesmente passar. As tropas do NEF (Novo Exército Farroupilha), de alguma forma, sabiam onde se posicionar para efetuar a interceptação. Uma demonstração de serviço de inteligência jamais vista nos tempos de dominação brasileira sobre o Rio Grande do Sul.

O Embaixador diminui a velocidade. Era arrogante o suficiente para não se deixar abalar. Depois de ver a morte vindo em sua direção, nua e coberta de sangue, não tinha porque se mixar na frente de meros soldados de fronteiras.

Viu seus perseguidores chegarem em seu encalço, enfim. Uma mulher – muitíssimo bonita, tinha de reconhecer – e um bugre, ambos vestidos com trajes especiais para o clima desértico, chegaram em um improvável e antigo Hummer M-1189 A2(PE) com blindagem STANAG-IV semi-conversível, dirigido por um autômato. A mulher estava posicionada sobre a estação de tiro, montada na parte posterior do veículo, com uma metralhadora Arapuã MG 4.2 de calibre 115mm, com capacidade de 1000 tiros por minuto, sem recuo ou aquecimento. De alguma forma, vê-la naquela posição lhe trazia pensamentos eróticos, o que fez com que o Embaixador, de forma reflexa, arrumasse seus negros cabelos, antes despenteados.

- Alto. Não se aproximem. Afastem-se todos dos veículos e baixem suas armas, ou abriremos fogo. - A mensagem pode ser ouvida cristalinamente, projetadas pelas caixas de som instaladas nos veículos da patrulha de fronteira.

- Eu sou a Major Aline Straussmann, da Quarta Força. Prendam esse homem que eu o levarei sob custódia até a Capital.

Ao ouvir a loira pronunciar-se, com tamanha segurança, o Embaixador não pode deixar de rir da situação. Em instantes estava cercado por farrapos, os soldados ciborgues remanufaturados pela República Riograndense a partir dos retalhos de baixas da guerra travada com o Império Pan-Brasileiro. Um helicóptero de transporte Falcon RC 3k surgiu silenciosamente e aterrizou atrás da major bonitona, levantando poeira e nublando a visão do Embaixador. A situação estava prolongando-se demais, mas ao menos o Embaixador agradecia ao fato de estar protegido pelo escudos de ozônio. O calor, todavia, lhe fazia suar à beira da desidratação.

- Embaixador. - Um homem grisalho, trajando farda de campo, desceu do helicóptero saudando o representante argentino. Trazia no peito as Seis Estrelas de Ouro de general, o mais alto posto do NEF. - Desculpa-nos pelo inconveniente e pela morte de teus homens...

- Como assim? - a Major Aline deixou cair os ombros, incrédula. - Prendam esse homem, ele sequestrou um dos nossos e...

- Major Aline – continuou o general – por crime de desobediência a ordens diretas, formação de bando paramilitar, promoção de ataque terrorista contra aliados e traição à República, a senhorita está presa.

Aline paralisou. O Embaixador notou que a loira buscava uma alternativa para a situação. Uma gota de suor frio brotou em sua testa quando a metralhadora da major começou a movimentar em sua direção. A tensão elevou-se. O Embaixador, já próximo a perder a calma, enfim falou:

- General?

Sem responder, o general apenas maneou a cabeça. Era o sinal de uma ordem previamente ordenada. Um tiro seco atingiu o bugre que acompanhava Aline entre os olhos. Caiu morto, com o que restava de sua cabeça sobre os ombros. Fora executado sumariamente.

- Senhorita, a partir deste momento estás destituída de suas patentes militares. Sugiro que nos acompanhe pacificamente, para encarar a Corte Marcial, ou terás o mesmo tratamento destinado a este terrorista paramilitar, conforme o artigo 76-B do Código de Regime de Defesa Militar.

Ao ver a loira derrotada, o Embaixador enfim relaxou. Estava seguro. Viu, finalmente, que por de trás do perímetro montado na linha de fronteira, um transporte terrestre especializado da Policia Caminera Argentina se aproximava.

- Senhor Embaixador, faz bom retorno a Buenos Aires.

- Farei, General. Nossa chancelaria entrará em contato com a tua para ajustar os relatórios deste pequeno incidente.

Passou andando pelo soldados e ciborgues de fronteira. Antes de embarcar na viatura da Policia Caminera, bebeu um longo gole de água oferecido por um patrulheiro castelhano. Já dentro do confortável e refrigerado transporte que lhe fora enviado, olhou uma última vez para aquela linda mulher, de olhos miseráveis frente à inexplicável derrota sofrida.

Enfiou a mão no bolso e retirou o pequeno objeto. Olhava, com inevitável repulsa, o testículo do homem que faria das tropas do exército argentino supersoldados. Ao pensar, agora, em segurança, em tudo o que fora preciso para completar a missão, analisou o custo de sua sua vitória.

Mesmo vitorioso, não sorriu. Getúlio ainda vivia.

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