O
Embaixador ainda tentava entender como tudo virara um caos em apenas
alguns segundos. Acelerando a Yamaha 7500iE modelo Dakar, preparada
para o caso de fugas de emergência, revivia aqueles momentos
enquanto olhava aguçadamente em diante, na esperança de enxergar
alguma patrulha caminera
castelhana. Instintivamente, tocou com a mão esquerda no bolso de
seu terno – arruinado pelas explosões – para garantir que o
fruto de toda a operação estivesse em segurança. Ao sentir que a
embalagem especial de armazenamento de tecidos biológicos estava
consigo, o Embaixador voltou a acelerar. De pouco adiantaria escapar
dos atacantes que praticamente destruíram o frigorífico se o maior
inimigo era o sol e a radiação UV do Sertão Pampeano.
Ajustou
os óculos protetores com lentes ShadowLux (parte do equipamento de
rally que acompanhava a motocicleta) e começou a relembrar o
acontecido. El
Carnicero já
tinha feito seu trabalho e estava no começo da diversão. Getúlio
Borges, é bem verdade, não soltara um grito sequer durante o
procedimento, o que apenas deixou el
Carnicero
ainda mais furioso. O Embaixador não podia deixar de apreciar o
espetáculo de tortura imposta ao riograndense. Assim como não podia
deixar de reconhecer que um exército construído a partir de
aprimoramentos genéticos a partir das células zigóticas de Getúlio
tinha o potencial de dominar impérios...
Foi
então que as luzes se apagaram, as paredes tremeram, parte do teto
cedeu e o som de explosão tomou conta do recinto. Imediatamente as
luzes de emergência na sala frigorífica acenderam-se, apenas para o
Embaixador, caído no chão em razão do impacto, vislumbrar Getúlio,
livre das correntes que lhe mantinham suspenso como as carnes de
gado. El
Carnicero
estavá lé, deitado ao seus pés, morto.
O
Embaixador viu Getúlio vindo em sua direção. Uma imagem que
demoraria anos a se pagar de sua memória. Nu, coberto de sangue dos
ferimentos abertos e de hematomas pelo corpo, arrastando a perna
esquerda em razão da dor. Getúlio tinha em seus olhos sede de
morte. E o argentino não teria a sorte de uma morte rápida como seu
lacaio, sabia.
Foi
a segunda explosão que lhe salvara. O impacto abriu um buraco na
parede e fez com que os detritos se depositassem sobre Getúlio. Com
o sargento parcialmente soterrado, o Embaixador tratou de fugir –
não sem antes pegar a embalagem projetada para conservar aquela
iguaria biológica.
Em
meio às ruínas do esconderijo, passou por seus soldados, que
inutilmente tentavam armar uma linha de defesa. Antes mesmo de ligar
a Yamaha – o mais veloz veículo a disposição naquele momento –
viu as tropas argentinas serem mortas. Nem mesmo conseguiu ver quem
eram os atacantes, mas sabia quem queriam salvar.
Agora,
sob o sol tórrido, começava a pensar se não teria sido melhor se
deixar matar por Getúlio. Inteligente como era, o Embaixador sabia
que caso sobrevivesse, ainda teria que lutar contra algum carcinoma,
que fatalmente surgiria após aquela inóspita fuga.
Suas
mãos queimavam pela radiação solar ao volante do motoveículo. As
bolhas começavam a estourar, causando dores lancinantes. Pelo
retro-vídeo-visor ocular de projeção retinal dos óculos de
proteção da motocicleta – o qual era conectado por conexão sem
fio com os computadores e câmeras da Yamaha – o argentino viu a
poeira de seus perseguidores se aproximar perigosamente. Sabia que em
algum momento atravessaria a fronteira, mas duvidava que isso
impediria seus inimigos de seguirem no seu encalço.
Sua
boca estava seca, de tanta sede. Estava prestes a desistir, mas ao
sentir o pacote que levava em seu bolso revitalizou as energias.
Foram anos de planejamento e desenvolvimento para que o Generalato
Argentino pudesse enfim por em prática o ambicioso projeto de
construir o melhor exército que a biogenetecnologia poderia
garantir. Planos que foram adiados por causa das irresponsáveis e
imponderadas aventuras de um Getúlio Borges mercenário. Os eventos
acontecidos no Uruguay ainda hoje eram motivo de fúria entre os
generais castelhanos. Agora, devolver a seu país a expectativa de um
exército imbatível, e ainda por cima vingar-se – sem bem que não
completamente – do maior desafeto de La Nación, faria do
Embaixador o mais elevado homem no corpo militar-diplomático do
Generalato. O poder, enfim, estaria ao seu alcance. Poder político,
o maior de todos.
Foi
em volto a esses pensamentos que deparou-se com uma barreira
construída sobre o leito seco do Rio Uruguai. Veículos de blindagem
solar e com geradores de escudo de ozônio traziam meia dúzias de
soldados e mais outra dezena de ciborgues farrapos em um largo
perímetro de contenção. A fronteira estava fechada. O Embaixador
não poderia simplesmente passar. As tropas do NEF (Novo Exército
Farroupilha), de alguma forma, sabiam onde se posicionar para efetuar
a interceptação. Uma demonstração de serviço de inteligência
jamais vista nos tempos de dominação brasileira sobre o Rio Grande
do Sul.
O
Embaixador diminui a velocidade. Era arrogante o suficiente para não
se deixar abalar. Depois de ver a morte vindo em sua direção, nua e
coberta de sangue, não tinha porque se mixar na frente de meros
soldados de fronteiras.
Viu
seus perseguidores chegarem em seu encalço, enfim. Uma mulher –
muitíssimo bonita, tinha de reconhecer – e um bugre, ambos
vestidos com trajes especiais para o clima desértico, chegaram em um
improvável e antigo Hummer M-1189 A2(PE) com blindagem STANAG-IV
semi-conversível, dirigido por um autômato. A mulher estava
posicionada sobre a estação de tiro, montada na parte posterior do
veículo, com uma metralhadora Arapuã MG 4.2 de calibre 115mm, com
capacidade de 1000 tiros por minuto, sem recuo ou aquecimento. De
alguma forma, vê-la naquela posição lhe trazia pensamentos
eróticos, o que fez com que o Embaixador, de forma reflexa,
arrumasse seus negros cabelos, antes despenteados.
-
Alto. Não se aproximem. Afastem-se todos dos veículos e baixem suas
armas, ou abriremos fogo. - A mensagem pode ser ouvida
cristalinamente, projetadas pelas caixas de som instaladas nos
veículos da patrulha de fronteira.
-
Eu sou a Major Aline Straussmann, da Quarta Força. Prendam esse
homem que eu o levarei sob custódia até a Capital.
Ao
ouvir a loira pronunciar-se, com tamanha segurança, o Embaixador não
pode deixar de rir da situação. Em instantes estava cercado por
farrapos, os soldados ciborgues remanufaturados pela República
Riograndense a partir dos retalhos de baixas da guerra travada com o
Império Pan-Brasileiro. Um helicóptero de transporte Falcon RC 3k
surgiu silenciosamente e aterrizou atrás da major bonitona,
levantando poeira e nublando a visão do Embaixador. A situação
estava prolongando-se demais, mas ao menos o Embaixador agradecia ao
fato de estar protegido pelo escudos de ozônio. O calor, todavia,
lhe fazia suar à beira da desidratação.
-
Embaixador. - Um homem grisalho, trajando farda de campo, desceu do
helicóptero saudando o representante argentino. Trazia no peito as
Seis Estrelas de Ouro de general, o mais alto posto do NEF. -
Desculpa-nos pelo inconveniente e pela morte de teus homens...
-
Como assim? - a Major Aline deixou cair os ombros, incrédula. -
Prendam esse homem, ele sequestrou um dos nossos e...
-
Major Aline – continuou o general – por crime de desobediência a
ordens diretas, formação de bando paramilitar, promoção de ataque
terrorista contra aliados e traição à República, a senhorita está
presa.
Aline
paralisou. O Embaixador notou que a loira buscava uma alternativa
para a situação. Uma gota de suor frio brotou em sua testa quando a
metralhadora da major começou a movimentar em sua direção. A
tensão elevou-se. O Embaixador, já próximo a perder a calma, enfim
falou:
-
General?
Sem
responder, o general apenas maneou a cabeça. Era o sinal de uma
ordem previamente ordenada. Um tiro seco atingiu o bugre que
acompanhava Aline entre os olhos. Caiu morto, com o que restava de
sua cabeça sobre os ombros. Fora executado sumariamente.
-
Senhorita, a partir deste momento estás destituída de suas patentes
militares. Sugiro que nos acompanhe pacificamente, para encarar a
Corte Marcial, ou terás o mesmo tratamento destinado a este
terrorista paramilitar, conforme o artigo 76-B do Código de Regime
de Defesa Militar.
Ao
ver a loira derrotada, o Embaixador enfim relaxou. Estava seguro.
Viu, finalmente, que por de trás do perímetro montado na linha de
fronteira, um transporte terrestre especializado da Policia Caminera
Argentina se aproximava.
-
Senhor Embaixador, faz bom retorno a Buenos Aires.
-
Farei, General. Nossa chancelaria entrará em contato com a tua para
ajustar os relatórios deste pequeno incidente.
Passou
andando pelo soldados e ciborgues de fronteira. Antes de embarcar na
viatura da Policia Caminera, bebeu um longo gole de água oferecido
por um patrulheiro castelhano. Já dentro do confortável e
refrigerado transporte que lhe fora enviado, olhou uma última vez
para aquela linda mulher, de olhos miseráveis frente à inexplicável
derrota sofrida.
Enfiou
a mão no bolso e retirou o pequeno objeto. Olhava, com inevitável
repulsa, o testículo do homem que faria das tropas do exército
argentino supersoldados. Ao pensar, agora, em segurança, em tudo o
que fora preciso para completar a missão, analisou o custo de sua
sua vitória.
Mesmo
vitorioso, não sorriu. Getúlio ainda vivia.
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