Muito importante para todos os que lerem as postagens: por vezes estarei falando sério, postando opiniões próprias. Outras vezes estarei brincando com opiniões que poderiam ser minhas, mas não são. E por vezes postarei material totalmente fictício, frutos da imaginação e talvez um pouco influenciados pelas experiências acumuladas ao longo dos anos.
Distinguir o que é realidade e o que é ficção fica a cargo de cada um.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Nascido em 4 de Julho


Hoje é aniversário do meu Vô Aldo.

Meu querido e amado Vô Aldo.

Em toda minha vida, conheci poucas pessoas que possuam uma vida rica em histórias – dramáticas, divertidas ou pitorescas. Talvez tenha sido esta vivência, doce e amarga, que tenha feito do seu coração algo grandioso. Ao menos para mim.

Nossa relação era muito mais que apenas avô e neto. Éramos amigos. Eu sou o Campeão do Vô! Ele, meu Herói... 
Meu pai gosta de contar que quando eu era recém-nascido – recém nascido mesmo, horas de vida, ainda na maternidade – meu avô chegou de Carazinho, esbaforido, procurando por minha mãe e pelo neto. A enfermeira teria perguntado “o senhor é pai da Rosa Maria? Nem precisa responder, seu neto é sua cara!”. Não durou muito: logo eu cresceria e me pareceria mais com meu pai, depois minha mãe, depois meu pai de novo. Mas nossa relação já nasceu (que tal o trocadilho?) assim, marcante, especial.

Já minha mãe me conta, sempre divertidamente, as tentativas de meu avô de ficar comigo para criar-me. Meus pais, ainda jovens, enfrentavam os tradicionais desafios de casais que procuram o equilíbrio entre o trabalho, a criação dos filhos e o sustento da casa. Minha irmã ainda não era nascida, e eu só posso imaginar as adaptações que minha mãe e meu pai passaram (afinal, minha esposa e eu passamos pelo mesmo com nosso filho). Porém, ciente disso, meu avô a cada conversa tentava convencer minha mãe de deixar-me em Carazinho para ser criado por ele e minha avó! E que não se preocupasse com dinheiro, que ele pagaria tudo! Ele tentou, minha mãe recusou, e a distância de 300 quilômetros entre Porto Alegre e Carazinho apenas fortaleceu nossa relação.

São coisas pequenas, mas que me deleitam ao pensar em ti, meu avô! Como os telefonemas – muito antes dos celulares e de termos telefone sem fio – às noites de quartas-feiras, depois dos jogos de futebol (de qualquer time que fosse) para comentar os lances. Eu ficava horas, por vezes em pé, outras vezes sentado na cadeira alta, junto à entrada do apartamento, onde ficava o telefone (todo moderno, com uma parte de acrílico transparente e botões coloridos que acendiam luzes ao serem apertados). O vô Aldo, posso imaginar, sentado na cadeira com braços, que fazia conjunto com a sala de jantar do apartamento dele, colocada ao lado do balcão (também parte da mobília de jantar), onde ficava seu telefone antigo, cinza, daqueles com a bolacha de discar. Se por um acaso eu não tivesse visto o jogo, o que com o passar dos anos foi ficando cada vez mais comum, sobretudo na faculdade, quando minhas aulas eram à noite, o vô me contava cada lance do jogo, e tecendo seus comentários sobre os jogadores. Apostador, ele sempre dava um palpite se o time A ou B teria chances de ser campeão...

E nossas idas a Jóquei? A paixão do vô Aldo por cavalos, certo ponto de sua vida, foi perigosa. O vício do jogo foi corrigido antes que eu pudesse me lembrar, mas foi traumático para a família. Mas para mim, os cavalos eram mais um daqueles momentos especiais na companhia de meu avô. Fosse na pista de cancha reta de Carazinho (“a maior da América do Sul”, gabam-se os carazinhenses), fosse no Jockey Club de Porto Alegre, eu sempre tive o prazer de ver de perto os cavalinhos, além do tradicional guaraná com pastel de queijo.

Eu falei do problema de jogo. Mas foi o vô Aldo quem me ensinou a jogar canastra. E pontinho. E escova. E alguns outros jogos de carta que nem lembro mais. Mas a canastra era nossa favorita. Faz anos que não jogo, por falta de tempo, mas quando eu jogava... Eu era bom, apenas porque aprendera os macetes do velho. Nas férias a Carazinho, eram horas a fio jogando partidas madrugadas frias adentro. Melhor mesmo eram as partidas em dupla, na qual éramos sempre o time a ser batido – que o diga minha tia nos jogos de dias chuvosos na praia.

Certa feita, meu avô me levou no clube. Eu nunca vi meu avô apostar – exceto no Jóquei, quando ele me deixava, ainda criança, escolher os cavalinhos para as apostas – mas naquela tarde no clube aconteceu algo que nunca vou saber inteiramente a verdade. Meu avô me arranjou uma partida com algum companheiro seu, tão septuagenário quanto ele. Usando as técnicas dele, venci. O velho saiu orgulhoso, e eu com um guaraná e um pastel...

Isso tudo foi na minha infância. Veio a adolescência e nossas visitas diminuíram. Pouco, não muito. Afinal, nos finais de semana eu queria festa, acampar... E meu avô foi muito especial.

Minha primeira bússola foi presente seu. Quando eu disse que iria ser escoteiro, ele apoiou na hora, sem titubear. Comprou-me uma bússola que havia visto certa feita em uma loja da rodoviária de Carazinho, enquanto esperava o ônibus de volta para Porto Alegre. Era simples porém muito bonita, com o exterior todo cromado. Ainda a tenho, até hoje, guardada com carinho. E foi com ela que acampei meus primeiros cinco anos.

Também foi seu presente meu primeiro terno. Eu contava com dezesseis anos, e precisava de uma roupa para a festa de quinze anos da irmã de meu melhor amigo. Lá se veio o vô, planalto abaixo, para me acompanhar pessoalmente na compra da fatiota. Isso mesmo, fatiota. Por causa do vô, passei anos chamando terno de fatiota. Era nas lojas Tevah. Lembro-me muito bem de meu avô sentado, em uma cadeira muito fina, escolhendo a fatiota juntamente com o vendedor, enquanto passava o carrinho de bebidas (sim, porque o Tevah naquela época oferecia whiskey a seus clientes especiais). O vô ficou apenas no café preto. E foram vários, até escolher terno, camisa, gravata e sapato.

Diga-se de passagem, foi presente dele também a segunda e terceira fatiotas!

Falando em presentes, foi meu avô quem instituiu a tradição dos envelopes no Natal. Preguiçoso, preferia dar dinheiro ao invés de presentes. Mesmo para as crianças (e depois adolescentes). Com seus envelopes natalinos, sempre gordos e generosos, pude financiar muitos veraneios e carnavais. Com o apropriado controle de caixa, era possível aproveitar ao máximo a praia. Mesmo quando ele desistiu de ir, por considerar que não tinha mais disposição de passar tempo na estrada e no antigo apartamento de Atlântida.

E foi assim, com nós dois envelhecendo, que nossas visitas realmente ficaram poucas. Minha culpa. A faculdade, o início de minha vida adulta, sempre havia algum impeditivo para ir a Carazinho. O vô, idoso, não encarou mais a estrada a Porto Alegre, salvo ocasiões muito especiais. As conversas depois dos jogos acabaram. De novo por minha causa, que nunca estava em casa nos horários de suas ligações.

A saudade era grande, mas acho que era maior no vô. Eu, guri, não sabia mensurar o que se passava. O vô ligava, quase toda semana, perguntando se eu iria a Carazinho visitá-los (ele e minha vó). Mas eu sempre tinha algum compromisso, que de tão importantes, nem lembro mais. Mas eu encaixava uma ida ou outra. Cada vez mais rara.

Veio o susto. Na virada do ano de 2002 para 2003 o vô Aldo sofreu um infarto. Ou dois, Não sei quantos foram. Mas ele ficou hospitalizado muitas semanas. Lembro-me como se fosse hoje o seu período de internação na Santa Casa de Misericórdia, aqui em Porto Alegre. Era janeiro, e por causa das greves da UFRGS, eu ainda estava em aulas. Todas as noites, depois da aula, eu ia para o hospital para dormir com meu avô. Eu era a companhia noturna do velho. Ressalvadas as circunstâncias, estávamos de novo curtindo nossa amizade. Futebol na TV, piadas, carteado, ajudar o velho a fazer xixi, enfim.

Depois da sua alta, fui visitá-lo em Carazinho somente em maio. Demorei demais em aceitar os inúmeros e incontáveis convites do vô. Mas naquele feriadão de 1º de maio, eu fui.

O vô já não podia mais dirigir, menos pela proibição médica, e mais pela sua conscientização de não tinha mais condições. Levei-o para passear pela cidade. Passamos pela hípica, pela casa de antigos amigos, pelo Aquático, por pontos da cidade que eu desconhecia. Era fim de tarde quando ele pediu que pegássemos a estrada para Passo Fundo, apenas para sentir a velocidade de seu Vectra. Voltamos para casa já em noite escura.

Na hora de dar tchau, seus olhos marejaram. “Não volta”, me disse ele, “fica mais”. Eu não podia, precisava trabalhar. E era meu último ano de faculdade. “Então tu vens semana que vem de novo, que tal?”.

Eu não fui. E me arrependo eterna e amargamente por isso.

Dez dias depois de minha última visita, de nosso último abraço, vô Aldo morreu. Se coração não agüentou mais. Foi a saudade ou foi a idade, nunca saberei.

Só sei que hoje, no teu aniversário, meu presente é nunca te esquecer, vô.

Te amo, sempre. 

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