Hoje é aniversário do meu Vô Aldo.
Meu querido e amado Vô Aldo.
Em toda minha vida, conheci poucas
pessoas que possuam uma vida rica em histórias – dramáticas, divertidas ou
pitorescas. Talvez tenha sido esta vivência, doce e amarga, que tenha feito do
seu coração algo grandioso. Ao menos para mim.
Nossa relação era muito mais que apenas
avô e neto. Éramos amigos. Eu sou o Campeão do Vô! Ele, meu Herói...
Já minha mãe me conta, sempre
divertidamente, as tentativas de meu avô de ficar comigo para criar-me. Meus
pais, ainda jovens, enfrentavam os tradicionais desafios de casais que procuram
o equilíbrio entre o trabalho, a criação dos filhos e o sustento da casa. Minha
irmã ainda não era nascida, e eu só posso imaginar as adaptações que minha mãe
e meu pai passaram (afinal, minha esposa e eu passamos pelo mesmo com nosso
filho). Porém, ciente disso, meu avô a cada conversa tentava convencer minha
mãe de deixar-me em Carazinho para ser criado por ele e minha avó! E que não se
preocupasse com dinheiro, que ele pagaria tudo! Ele tentou, minha mãe recusou,
e a distância de 300 quilômetros entre Porto Alegre e Carazinho apenas
fortaleceu nossa relação.
São coisas pequenas, mas que me deleitam
ao pensar em ti, meu avô! Como os telefonemas – muito antes dos celulares e de
termos telefone sem fio – às noites de quartas-feiras, depois dos jogos de
futebol (de qualquer time que fosse) para comentar os lances. Eu ficava horas,
por vezes em pé, outras vezes sentado na cadeira alta, junto à entrada do
apartamento, onde ficava o telefone (todo moderno, com uma parte de acrílico
transparente e botões coloridos que acendiam luzes ao serem apertados). O vô
Aldo, posso imaginar, sentado na cadeira com braços, que fazia conjunto com a
sala de jantar do apartamento dele, colocada ao lado do balcão (também parte da
mobília de jantar), onde ficava seu telefone antigo, cinza, daqueles com a
bolacha de discar. Se por um acaso eu não tivesse visto o jogo, o que com o
passar dos anos foi ficando cada vez mais comum, sobretudo na faculdade, quando
minhas aulas eram à noite, o vô me contava cada lance do jogo, e tecendo seus
comentários sobre os jogadores. Apostador, ele sempre dava um palpite se o time
A ou B teria chances de ser campeão...
E nossas idas a Jóquei? A paixão do vô
Aldo por cavalos, certo ponto de sua vida, foi perigosa. O vício do jogo foi
corrigido antes que eu pudesse me lembrar, mas foi traumático para a família.
Mas para mim, os cavalos eram mais um daqueles momentos especiais na companhia
de meu avô. Fosse na pista de cancha reta de Carazinho (“a maior da América do
Sul”, gabam-se os carazinhenses), fosse no Jockey Club de Porto Alegre, eu
sempre tive o prazer de ver de perto os cavalinhos, além do tradicional guaraná
com pastel de queijo.
Eu falei do problema de jogo. Mas foi o
vô Aldo quem me ensinou a jogar canastra. E pontinho. E escova. E alguns outros
jogos de carta que nem lembro mais. Mas a canastra era nossa favorita. Faz anos
que não jogo, por falta de tempo, mas quando eu jogava... Eu era bom, apenas
porque aprendera os macetes do velho. Nas férias a Carazinho, eram horas a fio
jogando partidas madrugadas frias adentro. Melhor mesmo eram as partidas em
dupla, na qual éramos sempre o time a ser batido – que o diga minha tia nos
jogos de dias chuvosos na praia.
Certa feita, meu avô me levou no clube.
Eu nunca vi meu avô apostar – exceto no Jóquei, quando ele me deixava, ainda
criança, escolher os cavalinhos para as apostas – mas naquela tarde no clube
aconteceu algo que nunca vou saber inteiramente a verdade. Meu avô me arranjou uma
partida com algum companheiro seu, tão septuagenário quanto ele. Usando as
técnicas dele, venci. O velho saiu orgulhoso, e eu com um guaraná e um
pastel...
Isso tudo foi na minha infância. Veio a
adolescência e nossas visitas diminuíram. Pouco, não muito. Afinal, nos finais
de semana eu queria festa, acampar... E meu avô foi muito especial.
Minha primeira bússola foi presente seu.
Quando eu disse que iria ser escoteiro, ele apoiou na hora, sem titubear.
Comprou-me uma bússola que havia visto certa feita em uma loja da rodoviária de
Carazinho, enquanto esperava o ônibus de volta para Porto Alegre. Era simples
porém muito bonita, com o exterior todo cromado. Ainda a tenho, até hoje,
guardada com carinho. E foi com ela que acampei meus primeiros cinco anos.
Também foi seu presente meu primeiro
terno. Eu contava com dezesseis anos, e precisava de uma roupa para a festa de
quinze anos da irmã de meu melhor amigo. Lá se veio o vô, planalto abaixo, para
me acompanhar pessoalmente na compra da fatiota. Isso mesmo, fatiota. Por causa
do vô, passei anos chamando terno de fatiota. Era nas lojas Tevah. Lembro-me
muito bem de meu avô sentado, em uma cadeira muito fina, escolhendo a fatiota
juntamente com o vendedor, enquanto passava o carrinho de bebidas (sim, porque
o Tevah naquela época oferecia whiskey a seus clientes especiais). O vô ficou
apenas no café preto. E foram vários, até escolher terno, camisa, gravata e
sapato.
Diga-se de passagem, foi presente dele
também a segunda e terceira fatiotas!
Falando em presentes, foi meu avô quem
instituiu a tradição dos envelopes no Natal. Preguiçoso, preferia dar dinheiro
ao invés de presentes. Mesmo para as crianças (e depois adolescentes). Com seus
envelopes natalinos, sempre gordos e generosos, pude financiar muitos veraneios
e carnavais. Com o apropriado controle de caixa, era possível aproveitar ao
máximo a praia. Mesmo quando ele desistiu de ir, por considerar que não tinha
mais disposição de passar tempo na estrada e no antigo apartamento de
Atlântida.
E foi assim, com nós dois envelhecendo,
que nossas visitas realmente ficaram poucas. Minha culpa. A faculdade, o início
de minha vida adulta, sempre havia algum impeditivo para ir a Carazinho. O vô,
idoso, não encarou mais a estrada a Porto Alegre, salvo ocasiões muito
especiais. As conversas depois dos jogos acabaram. De novo por minha causa, que
nunca estava em casa nos horários de suas ligações.
A saudade era grande, mas acho que era
maior no vô. Eu, guri, não sabia mensurar o que se passava. O vô ligava, quase
toda semana, perguntando se eu iria a Carazinho visitá-los (ele e minha vó).
Mas eu sempre tinha algum compromisso, que de tão importantes, nem lembro mais.
Mas eu encaixava uma ida ou outra. Cada vez mais rara.
Veio o susto. Na virada do ano de 2002
para 2003 o vô Aldo sofreu um infarto. Ou dois, Não sei quantos foram. Mas ele
ficou hospitalizado muitas semanas. Lembro-me como se fosse hoje o seu período
de internação na Santa Casa de Misericórdia, aqui em Porto Alegre. Era janeiro,
e por causa das greves da UFRGS, eu ainda estava em aulas. Todas as noites,
depois da aula, eu ia para o hospital para dormir com meu avô. Eu era a
companhia noturna do velho. Ressalvadas as circunstâncias, estávamos de novo
curtindo nossa amizade. Futebol na TV, piadas, carteado, ajudar o velho a fazer
xixi, enfim.
Depois da sua alta, fui visitá-lo em
Carazinho somente em maio. Demorei demais em aceitar os inúmeros e incontáveis
convites do vô. Mas naquele feriadão de 1º de maio, eu fui.
O vô já não podia mais dirigir, menos
pela proibição médica, e mais pela sua conscientização de não tinha mais
condições. Levei-o para passear pela cidade. Passamos pela hípica, pela casa de
antigos amigos, pelo Aquático, por pontos da cidade que eu desconhecia. Era fim
de tarde quando ele pediu que pegássemos a estrada para Passo Fundo, apenas
para sentir a velocidade de seu Vectra. Voltamos para casa já em noite escura.
Na hora de dar tchau, seus olhos
marejaram. “Não volta”, me disse ele, “fica mais”. Eu não podia, precisava
trabalhar. E era meu último ano de faculdade. “Então tu vens semana que vem de
novo, que tal?”.
Eu não fui. E me arrependo eterna e
amargamente por isso.
Dez dias depois de minha última visita,
de nosso último abraço, vô Aldo morreu. Se coração não agüentou mais. Foi a saudade
ou foi a idade, nunca saberei.
Só sei que hoje, no teu aniversário, meu
presente é nunca te esquecer, vô.
Te amo, sempre.
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Que homenagem emocionante Pedro!!!
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