Muito importante para todos os que lerem as postagens: por vezes estarei falando sério, postando opiniões próprias. Outras vezes estarei brincando com opiniões que poderiam ser minhas, mas não são. E por vezes postarei material totalmente fictício, frutos da imaginação e talvez um pouco influenciados pelas experiências acumuladas ao longo dos anos.
Distinguir o que é realidade e o que é ficção fica a cargo de cada um.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Nos Bancos do Pérola

Escrever é um exercício de paciência. A necessidade de transpor em texto, ao ritmo das dedilhadas no teclado, as palavras que constroem a coesão da trama requer, mais que qualquer coisa, a capacidade de se por de lado a ânsia de contar atabalhoadamente ideias que surgem em velocidade urgente. Pensando em como é o ritmo de vida levado em dias de hoje, de hiperconectividade e imediata exigência de resposta à toda e qualquer comunicação, a realidade que experimentei em minha infância, nos infames anos oitenta, demonstra que, hoje, paciência é algo raro e que necessita – e muito – ser exercitado por mais pessoas

Ainda criança – cinco anos, provavelmente – estava eu na praia de Atlântida passando o veraneio com meus avós. Meus pais, ainda casados na época, deixavam-me com os pais de minha mãe para aproveitar o litoral sempre que por alguma razão, como trabalho, precisavam retornar a Porto Alegre. E eu, na praia com o vô e a vó, experimentava a mesma rotina, diariamente.

Não havia videogame na praia. E o fliperama só abria depois das quatorze horas. Portanto, era necessário ocupar o dia de uma criança, criada na cidade, de uma forma mais vagarosa. Confesso que não faço ideia de que horas acordávamos pela manhã. Lembro apenas que minha Vó – ou minha mãe, quando ela estava na praia junto – não tinha qualquer remorso em abrir a janela de inopino, permitindo que os raios do sol transbordassem quarto adentro. Ainda na cama, eu apertava os olhos, cerrados do sono leve da manhã, na vã esperança de continuar dormindo mais um pouco.

Era hora de nos arrumarmos para ir à beira da praia.

Calção vestido, Sundown passado, Nescau tomado, saíamos silenciosamente pela porta da cozinha para não acordar meu avô que ainda dormia na sala, que com o sofá-cama de vinil marrom tão antigo quanto o próprio edifício Albatroz aberto transformava-se em quarto dos mais velhos. E lá íamos todos.

Adultos carregavam cadeiras de praia, algumas de madeira e tecido, fato que olhado hoje, em tempos de alumínio e nylon, soa estranho e antihigiênico., Refletindo enquanto escrevo, fico admirado em pensar que minha avó – que antes de sair para irmos à praia ainda levava a vianda até o Bar da Adélia para pegar o almoço na volta – pequenina, carregava, além de sua antiga cadeira de armação de madeira, um guarda-sol tão pesado quanto ela própria...

Eu seguia logo atrás. De chinelos Ryder, puxava, por uma corda de varal verde, um grande balde laranja com rodinhas, em forma de peixe, dentro do qual estavam minhas preciosas ferramentes. Pazinhas e aradinhos e moldes para castelos de areia. Exatamente o que se precisa na areia.

Eram quatro quadras até a areia. Para mim, com apenas cinco anos, uma distância imensa. O caminho era contado pelas quadras, cada qual com um único edifício de esquina a esquina. Imensos blocos de concreto, assim como o nosso prédio, ficavam mais novos quanto mais próximos do mar. Ainda lembro. Depois do Albatroz, então de cor predominante branca com ladrilhos coloridos, seguiam Marise (azul), Pérola (cor-de-rosa) e Fragata (verde). Do outro lado da Avenida Central ficava o Hotel, com sua piscina e suas cabanas. Eu evita caminhar daquele lado, mesmo tendo um pouco mais de sombra, por causa das árvores. Além de evitar os coquinhos e magicamente entravam nos chinelos, machucando os meu pés, as quadras não eram do mesmo tamanho e a distância parecia maior. Apenas impressão, sei. Mas então era uma realidade. Pelo lado do hotel era mais longe.

Uma vez na praia, era sempre a mesma rotina. Amada rotina. Jogo do bicho no Bar do Tato, em que tinha de lembrar os animais com os quais sonhara. Peixe-rei frito e pastel de queijo. Milho verde. Guaraná. Apenas depois de cavado meu buraco e construído o castelo de areia – que nas poucas vezes que lembro da presença de meu pai ganhava detalhes de pingos de areia molhada no acabamento – chegava o Vô.

Pacientemente, ele vinha em seu próprio ritmo, com seu sungão, camisa social de manga curta e boné na cabeça. Sua cadeira, mais alta e ereta que as espreguiçadeiras que as mulheres usam para banhos de sol, ficava o tempo todo à sombra do guarda-sol, protegendo a pele branca que rosava com o menor dos mormaços. Sem temer a sujeira, chegava e me pedia um abraço – o qual eu ansiava desde o momento que acordara. Depois, seguindo seu ritual, lia a Zero Hora (ou será que a memória hoje me trai?) e, sempre sentado, olhava o horizonte além-mar, dedos cruzados sobre o colo.

As horas passavam e a primeira a voltar era sempre minha avó. Afinal, a vianda esperava com o almoço, e a mesa não se poria sozinha. Minha mãe, recolhendo as cadeiras, voltava junto, acompanhada de minha irmã menor, de apenas dois anos, para ajudar. Ao final, restávamos sempre apenas o Vô e eu.

Se eu ficava para acompanhá-lo ou vice-versa, é impossível dizer. Só sei que eu ficava até meu limite. Quando minha fome já era insuportável. Quando o desejo de tomar um banho de água doce e tirar o sal e a areia do corpo não mais me permitiam continuar, fosse ao sol ou à sombra. E então, sob as orientações do Vô, começávamos o longo retorno.

O caminho de volta é sempre mais massacrante. O cansaço das corridas nas dunas e mergulhos no mar cobra seu preço. O chinelo pesa com a areia molhada arrastando nos calcanhares. O baldinho, cheio de areia molhada nas frestas, tornava-se um fardo. Mas o pior era o vagaroso ritmo do meu avô. Não importava o quanto eu quisesse ser rápido, eu tinha de acompanhar o ritmo do Vô.

Com suas sandálias de couro, marchava calmamente, trazendo o pesado guarda-sol e a cadeira de alumínio com tiras de nylon verdes. E com o sol inclemente do início da tarde,machucando meus ombros já sem qualquer proteção, chegávamos ao final do bloco Fragata.

Foi então, num dia como qualquer outro, sem nada de especial, a não ser a companhia dele, que meu Vô me deu uma lição daquelas que somente os avôs podem dar aos netos. Ao chegar na calçada em frente ao Marise, virei para ver onde ele estava. Ainda no início do Peróla, bem atrás, lá estava ele, cansadamente avançando passo após passo,. Tudo o que eu queira era chegar logo em casa (apartamento, no caso), fazer xixi, almoçar, cochilar, enfim, tudo que uma criança quer depois de horas a beira-mar. Voltei correndo, puxando o balde, tendo apenas o cuidado de não perder nenhum brinquedo nos solavancos causados pela corrida.

Vamos, Vô. Rápido”, eu dizia, com uma urgência na voz que se vista hoje pareceria ainda mais inocente.

Paciência, meu neto. O Vô tá indo como pode.”

Mas Vô, tá demorando...”

*Paciência, campeão.”

O que é isso, Vô?”

A essa altura, aproveitando o diálogo, o Vô parou a caminhada, aproveitando para tomar fôlego. Eu nem mesmo percebera.

Paciência? Bom, agora, neste momento, é a capacidade de esperar. Será que tu tens?.”

Ah, mas eu não sei como se tem isso...”

Queres aprender?”

Eu queria. Eu queria poder esperar pelo caminhar demorado daquele velho tão especial, sem reclamar. Ele não merecia uma reclamação boba daquelas. Tampouco eu queria aquela angústia da espera. Queria, apenas, a serenidade que ele tinha enquanto sentava olhando para o mar, de mãos cruzadas ao colo.

Faz assim. Vai até a frente do Pérola e senta nos bancos”. (Não sei hoje, mas na época o Pérola tinha, em frente à sua porta de entrada, bem no meio da quadra, dois enormes bancos brancos que se estiam ao longo da calçada, um para cada lado.) “Senta na ponta mais perto de nossa casa. Fecha os olhos e cruza os dedos das mãos. Assim. Aí descruza só os dedões. Assim.”

Eu fiz tudo exatamente como ele mandara. Corri até o banco, sentei de olhos fechados, dedos cruzados e dedões descruzados. Não percebi nada, apenas concentrado na lição ensinada. Sabe-se lá quanto tempo tempo se passou até eu sentir o tapinha nos ombros. Era meu avô. “Vamos pra casa?”, ele disse.

Vô, fiz tudo que me disseste. E agora?”

E agora o quê?”

Quando eu vou ter paciência?”

Já vais ter. É só esperar, meu neto, que ela vem.”

Esperar quanto tempo?”

Quanto tempo precisar, que ela chega sem avisar.”

Sorrindo, acomodou o guarda-sol embaixo do braço que carregava a cadeira e me pegou pela mão para irmos para casa. Pacientemente.

Almoçamos a comida fria, apenas nós dois.

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