Escrever é um exercício de
paciência. A necessidade de transpor em texto, ao ritmo das
dedilhadas no teclado, as palavras que constroem a coesão da trama
requer, mais que qualquer coisa, a capacidade de se por de lado a
ânsia de contar atabalhoadamente ideias que surgem em velocidade
urgente. Pensando em como é o ritmo de vida levado em dias de hoje,
de hiperconectividade e imediata exigência de resposta à toda e
qualquer comunicação, a realidade que experimentei em minha
infância, nos infames anos oitenta, demonstra que, hoje, paciência
é algo raro e que necessita – e muito – ser exercitado por mais
pessoas
Ainda criança – cinco anos,
provavelmente – estava eu na praia de Atlântida passando o
veraneio com meus avós. Meus pais, ainda casados na época,
deixavam-me com os pais de minha mãe para aproveitar o litoral
sempre que por alguma razão, como trabalho, precisavam retornar a
Porto Alegre. E eu, na praia com o vô e a vó, experimentava a mesma
rotina, diariamente.
Não havia videogame na praia. E o
fliperama só abria depois das quatorze horas. Portanto, era
necessário ocupar o dia de uma criança, criada na cidade, de uma
forma mais vagarosa. Confesso que não faço ideia de que horas
acordávamos pela manhã. Lembro apenas que minha Vó – ou minha
mãe, quando ela estava na praia junto – não tinha qualquer
remorso em abrir a janela de inopino, permitindo que os raios do sol
transbordassem quarto adentro. Ainda na cama, eu apertava os olhos,
cerrados do sono leve da manhã, na vã esperança de continuar
dormindo mais um pouco.
Era hora de nos arrumarmos para ir à
beira da praia.
Calção vestido, Sundown passado,
Nescau tomado, saíamos silenciosamente pela porta da cozinha para
não acordar meu avô que ainda dormia na sala, que com o sofá-cama
de vinil marrom tão antigo quanto o próprio edifício Albatroz
aberto transformava-se em quarto dos mais velhos. E lá íamos todos.
Adultos carregavam cadeiras de praia,
algumas de madeira e tecido, fato que olhado hoje, em tempos de
alumínio e nylon, soa estranho e antihigiênico., Refletindo
enquanto escrevo, fico admirado em pensar que minha avó – que
antes de sair para irmos à praia ainda levava a vianda até o Bar da
Adélia para pegar o almoço na volta – pequenina, carregava, além
de sua antiga cadeira de armação de madeira, um guarda-sol tão
pesado quanto ela própria...
Eu seguia logo atrás. De chinelos
Ryder, puxava, por uma corda de varal verde, um grande balde laranja
com rodinhas, em forma de peixe, dentro do qual estavam minhas
preciosas ferramentes. Pazinhas e aradinhos e moldes para castelos de
areia. Exatamente o que se precisa na areia.
Eram quatro quadras até a areia. Para
mim, com apenas cinco anos, uma distância imensa. O caminho era
contado pelas quadras, cada qual com um único edifício de esquina a
esquina. Imensos blocos de concreto, assim como o nosso prédio,
ficavam mais novos quanto mais próximos do mar. Ainda lembro. Depois
do Albatroz, então de cor predominante branca com ladrilhos
coloridos, seguiam Marise (azul), Pérola (cor-de-rosa) e Fragata
(verde). Do outro lado da Avenida Central ficava o Hotel, com sua
piscina e suas cabanas. Eu evita caminhar daquele lado, mesmo tendo
um pouco mais de sombra, por causa das árvores. Além de evitar os
coquinhos e magicamente entravam nos chinelos, machucando os meu pés,
as quadras não eram do mesmo tamanho e a distância parecia maior.
Apenas impressão, sei. Mas então era uma realidade. Pelo lado do
hotel era mais longe.
Uma vez na praia, era sempre a mesma
rotina. Amada rotina. Jogo do bicho no Bar do Tato, em que tinha de
lembrar os animais com os quais sonhara. Peixe-rei frito e pastel de
queijo. Milho verde. Guaraná. Apenas depois de cavado meu buraco e
construído o castelo de areia – que nas poucas vezes que lembro da
presença de meu pai ganhava detalhes de pingos de areia molhada no
acabamento – chegava o Vô.
Pacientemente, ele vinha em seu
próprio ritmo, com seu sungão, camisa social de manga curta e boné
na cabeça. Sua cadeira, mais alta e ereta que as espreguiçadeiras
que as mulheres usam para banhos de sol, ficava o tempo todo à
sombra do guarda-sol, protegendo a pele branca que rosava com o menor
dos mormaços. Sem temer a sujeira, chegava e me pedia um abraço –
o qual eu ansiava desde o momento que acordara. Depois, seguindo seu
ritual, lia a Zero Hora (ou será que a memória hoje me trai?) e,
sempre sentado, olhava o horizonte além-mar, dedos cruzados sobre o
colo.
As horas passavam e a primeira a
voltar era sempre minha avó. Afinal, a vianda esperava com o almoço,
e a mesa não se poria sozinha. Minha mãe, recolhendo as cadeiras,
voltava junto, acompanhada de minha irmã menor, de apenas dois anos,
para ajudar. Ao final, restávamos sempre apenas o Vô e eu.
Se eu ficava para acompanhá-lo ou
vice-versa, é impossível dizer. Só sei que eu ficava até meu
limite. Quando minha fome já era insuportável. Quando o desejo de
tomar um banho de água doce e tirar o sal e a areia do corpo não
mais me permitiam continuar, fosse ao sol ou à sombra. E então, sob
as orientações do Vô, começávamos o longo retorno.
O caminho de volta é sempre mais
massacrante. O cansaço das corridas nas dunas e mergulhos no mar
cobra seu preço. O chinelo pesa com a areia molhada arrastando nos
calcanhares. O baldinho, cheio de areia molhada nas frestas,
tornava-se um fardo. Mas o pior era o vagaroso ritmo do meu avô. Não
importava o quanto eu quisesse ser rápido, eu tinha de acompanhar o
ritmo do Vô.
Com suas sandálias de couro, marchava
calmamente, trazendo o pesado guarda-sol e a cadeira de alumínio com
tiras de nylon verdes. E com o sol inclemente do início da
tarde,machucando meus ombros já sem qualquer proteção, chegávamos
ao final do bloco Fragata.
Foi então, num dia como qualquer
outro, sem nada de especial, a não ser a companhia dele, que meu Vô
me deu uma lição daquelas que somente os avôs podem dar aos netos.
Ao chegar na calçada em frente ao Marise, virei para ver onde ele
estava. Ainda no início do Peróla, bem atrás, lá estava ele,
cansadamente avançando passo após passo,. Tudo o que eu queira era
chegar logo em casa (apartamento, no caso), fazer xixi, almoçar,
cochilar, enfim, tudo que uma criança quer depois de horas a
beira-mar. Voltei correndo, puxando o balde, tendo apenas o cuidado
de não perder nenhum brinquedo nos solavancos causados pela corrida.
“Vamos, Vô. Rápido”, eu dizia,
com uma urgência na voz que se vista hoje pareceria ainda mais
inocente.
“Paciência, meu neto. O Vô tá
indo como pode.”
“Mas Vô, tá demorando...”
*Paciência, campeão.”
“O que é isso, Vô?”
A essa altura, aproveitando o diálogo,
o Vô parou a caminhada, aproveitando para tomar fôlego. Eu nem
mesmo percebera.
“Paciência? Bom, agora, neste
momento, é a capacidade de esperar. Será que tu tens?.”
“Ah, mas eu não sei como se tem
isso...”
“Queres aprender?”
Eu queria. Eu queria poder esperar
pelo caminhar demorado daquele velho tão especial, sem reclamar. Ele
não merecia uma reclamação boba daquelas. Tampouco eu queria
aquela angústia da espera. Queria, apenas, a serenidade que ele
tinha enquanto sentava olhando para o mar, de mãos cruzadas ao colo.
“Faz assim. Vai até a frente do
Pérola e senta nos bancos”. (Não sei hoje, mas na época o Pérola
tinha, em frente à sua porta de entrada, bem no meio da quadra, dois
enormes bancos brancos que se estiam ao longo da calçada, um para
cada lado.) “Senta na ponta mais perto de nossa casa. Fecha os
olhos e cruza os dedos das mãos. Assim. Aí descruza só os dedões.
Assim.”
Eu fiz tudo exatamente como ele
mandara. Corri até o banco, sentei de olhos fechados, dedos cruzados
e dedões descruzados. Não percebi nada, apenas concentrado na lição
ensinada. Sabe-se lá quanto tempo tempo se passou até eu sentir o
tapinha nos ombros. Era meu avô. “Vamos pra casa?”, ele disse.
“Vô, fiz tudo que me disseste. E
agora?”
“E agora o quê?”
“Quando eu vou ter paciência?”
“Já vais ter. É só esperar, meu neto, que ela vem.”
“Esperar quanto tempo?”
“Quanto tempo precisar, que ela chega sem avisar.”
Sorrindo, acomodou o guarda-sol
embaixo do braço que carregava a cadeira e me pegou pela mão para
irmos para casa. Pacientemente.
Almoçamos a comida fria, apenas nós
dois.
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