Muito importante para todos os que lerem as postagens: por vezes estarei falando sério, postando opiniões próprias. Outras vezes estarei brincando com opiniões que poderiam ser minhas, mas não são. E por vezes postarei material totalmente fictício, frutos da imaginação e talvez um pouco influenciados pelas experiências acumuladas ao longo dos anos.
Distinguir o que é realidade e o que é ficção fica a cargo de cada um.

domingo, 30 de agosto de 2009

A pior das noites

O sol ainda não havia nascido quando o despertador tocou. Na verdade, o que tocou era o telefone celular dele deixado na cabeceira da cama, no lado oposto em que ela dorme. Os lençóis estavam revirados. As cobertas, caídas ao chão. A noite foi dolorida, sofrida e sobretudo mal dormida. Os olhos dela ardiam das lágrimas que ainda agora continuavam a marcar sua face. E o despertador a tocar.

O dia estava prestes a começar, mas ela não podia imaginar por onde começar. A discussão na noite anterior e a dor do choro que durou toda a madrugada eram quase impossíveis de suportar, mas ainda assim não eram nada em comparação a encontrar a cama vazia ao acordar. Pela primeira vez em anos ele não dormira em casa, nem sequer no sofá. E o dia exigia que ela levantasse e fosse tomar o café da manhã.

A cozinha, toda branca, estava igual. As panelas, ainda com comida, juntavam formigas no fogão. No chão, os pratos quebrados com restos de comida, jogados ali no calor da discussão. Entrar naquele ambiente era difícil para ela. Não apenas pela dificuldade de circular em meio ao caos, mas pela sensação de ouvir as paredes repetindo as agressões e insultos proferidos a menos de dez horas atrás.
O café preto não foi capaz de lhe animar, mas após enxaguar bem o rosto foi possível disfarçar as lágrimas. Sorte que a previsão era de sol forte, pois assim poderia usar os óculos escuros para disfarçar as olheiras. Ela colocou sua melhor roupa, mesmo sendo apenas mais um dia de trabalho, como se assim fosse possível elever seu espírito. Por mais que desejasse, não conseguia parar de pensar nele. Onde estava? Onde dormiu? Será que ele conseguiu dormir? Por que não levou a droga do celular? Por que ele fez aquilo?

Preferiu ir de táxi para o trabalho. Apesar dele ter tido a decência de deixar o carro na garagem de casa, ela sabia que não estava em condições de dirigir até o trabalho. Será que ele estaria lá? Evidente que ele iria trabalhar, nunca faltava, mesmo quando doente. Era preciso que o próprio diretor da empresa lhe mandasse para casa. Trabalhavam juntos a tanto tempo que a rotina sozinha lhe era estranha. Como seria o ambiente de trabalho, com os demais colegas lhe perguntando onde estava seu marido?

Apesar de todo o acontecido, chegou na hora para o trabalho. Não que lhe fosse exigido o cumprimento de horário. Na condição de sub-diretora, ela gozava de alguns privilégios. Mas mesmo assim, lá estava ela, pronta para o trabalho e sozinha na repartição. Nenhum de seus colegas havia chegado para o trabalho. Nem mesmo ele. Sozinha e deprimida, sentou em sua sala e engoliu o choro que tentava emergir. Tapou a boca com as costas da mão e engoliu em seco. Naquele momento, não soube precisar se a dor que sentiu em sua garganta tinha origem física ou psicológica. Permaneceu sentada, em silêncio, até que, sem perceber, fechou os olhos e cochilou. Estranhamente, o sono era reconfortante e revigorante, com sonhos tranquilos e pacíficos, bem diferente da última madrugada, em que nas vezes que tentara dormir lhe vinham pesadelos e tremores que impediam que ela relaxasse. Ali, no silêncio do escritório, adormeceu e pode finalmente descansar e parar de pensar nele e na briga que tiveram.

Quando acordou, o fez de súbito. Um espasmo percorreu todo seu corpo lhe fazendo pular da cadeira com o coração acelerado. Quanto tempo tinha ela dormido? Onde estavam os outros? Onde estava ele? Por que não lhe ligara até agora? Está bem, ela disse para ele não ligar, mas não esperava que ele obedecesse. Ele nunca fazia o que ela dizia, nem mesmo no trabalho, em que ela era sua superiora hierárquica. Mas diabos, onde estavam todos? Ela certamente não desejava enfrentar as perguntas dos colegas sobre o paradeiro dele ou mesmo o porque das olheiras e de seu sumiço, mas a completa ausência de todos no setor parecia uma piada do destino – e de muito mal gosto.

Resolveu ver as horas. Não sabia quanto tempo havia dormido. Pegou o celular em sua bolsa – o relógio, que tanto gostava, arrebentou durante a discussão quando ele a pegou pelo pulso para impedir que ela lhe acertasse um tapa no rosto. Somente então descobriu que o telefone estava sem bateria. Ah, meu Deus, será que ele ligou? Quanto tempo estava sem bateria? Imediatamente foi até a segunda gaveta da mesa, onde guardava um recarregagor, dentro de uma caixa de couro horrivelmente brega que ele lhe deu de presente certa vez. Conectou o aparelho na tomada, esperou alguns segundos e ligou o telefone celular. Mais do que nunca detestou aquela chata e insuportável música de saudação do telefone. Quando o telefone finalmente ligou, pode ver que passavam das nove e meia da manhã. Então, começou. Dezenas de mensagens de ligações perdidas. O número ela conhecia, era do celular de sua sogra. Bem típico dele. Discutir com ela e procurar refúgio na casa da mamãe. Será que ele dormiu lá? Seria bom se ele tivesse dormido na casa da mãe?

Então, sem mais por esperar, chegou uma última mensagem de texto. Enviada do celular da mãe dele. “Me liga. Urgente.” E agora? Fora ele quem mandou a mensagem? Afinal, que mensagem desaforada era essa, sem nem mesmo um pedido de desculpas, nem mesmo um “eu te amo” para suavizar tudo? Sabia que ele, quando irritado, podia ser insensível ou rancoroso até, mas isso era demais. Deveria ela ligar? E se a mensagem fosse mesmo da mãe dele?

Resolveu ligar. Fazendo o máximo de esforço para esconder suas emoções, ligou para o celular de sua sogra. Após algumas chamadas, finalmente atenderam o telefone. Falou secamente, porém baixo, como se tivesse vergonha que ouvissem sua voz – onde estavam todos? Mal começou a conversa e desligou o telefone. Saiu correndo, nervosamente, sem nem ao menos perceber que o telefone ainda estava conectado à tomada na parede. Não se importou com o fato de arrebentar o fio do carregador. Apenas saiu correndo, chocada e abalada demais para pensar em qualquer coisa. A rua, movimentada de pedestres, parecia mover-se em câmera lenta. Entrou no primeiro táxi do ponto em frente à empresa. E seguiu para o hospital.

Ao chegar ao Hospital Central, não conseguia pensar em mais nada. A discussão, a briga que tiveram, nada mais importava. Nem mesmo pensava mais no motivo de toda a celeuma. Então, na sala de espera da UTI, todas suas respostas foram respondidas. Lá estavam todos seus colegas de trabalho. E lá dentro, ele. Por isso não ligou. Por isso não foi trabalhar. Seu cunhado lhe explicou tudo. Ele estava no lugar errado na hora errada. De repente, ela desejou tudo de volta. A briga, a discussão, a tristeza, o choro, a incerteza. Tudo era melhor que a resposta e a verdade.

Dentro da UTI, nada de desculpas ou perdões. Apenas o adeus.

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