A sala era estéril. As paredes revestidas para suportar o intenso frio da câmara frigorífica criavam, juntamente com as estantes de metal, um ambiente desolador. As luzes, apagadas, completavam o cenário. Apenas a placa de “saída” sob a porta sem trinco emitia uma leve luminescência vermelha sobre o peito nu de Getúlio.
Desacordado, o corpo de Getúlio começava a acusar os efeitos do frio extremo. Pendurado pelos pulsos algemados, tal qual os grandes pedaços de carne bovina, Getúlio delirava. Sua mente ainda vagava em meio à memórias da tortura sofrida. Uma massagem especial para amaciar a carne.
Getúlio acordou com o barulho da pesada porta da câmara frigorífica se abrindo. Mal podia respirar, tão forte o frio que lhe ardia nas narinas. Seus pulmões estavam prestes a explodir, parecia. Getúlio lutava para manter-se alerta, mas as surras sofridas nas últimas horas faziam com que seus sentidos pedissem trégua e tentassem, a todo momento, mergulhar na inconsciência. A visão, turva pelo sangue congelado em seu supercilio, dava a Getúlio noção do castigo que lhe fora imposto. O torturador argentino certamente era um expert no ofício. Tentou esboçar algum movimento, algum mecanismo de fuga. Em vão. Seu corpo, coberto de hematomas e marcas de queimadura, não respondia. Viu, então, seus dedos das mãos e pés roxos. O frio cobrava seu preço. Getúlio, ao que parecia, estava prestes a ter de pagá-lo.
Pela porta entraram dois homens, completamente distintos. O primeiro Getúlio reconheceu imediatamente. Com um terno preto de corte italiano e fino tecido húngaro, o homem de cabelos negros e impecavelmente penteados parecia deslocado naquela improvisada sala de tortura, mas ainda assim mostrava uma intimidade inquietante com o ambiente de horror em que se encontrava.
- Espero não ter acordado meu amigo. - O homem falava o português perfeitamente, com um quase imperceptível sotaque castelhano - Espero que estejas apreciando tua estada. Como Embaixador, faço questão de que recebas o devido tratamento de herói!
O sorriso cínico no canto do lábio fino escancarava todo o sarcasmo. Getúlio não podia evitar de lamentar, a cada vez que olhava para a cara do embaixador do Generalato Argentino, pelo serviço que aceitara executar no Paraiso Fiscal Oriental del Uruguay. Malditas amizades que lhe prometeram dinheiro fácil.
- Não te preocupas, Getúlio. Tua dívida para com nosso país está prestes a ser quitada. Permite-me que eu te apresente el Carnicero.
“O Açougueiro”, pensou Getúlio. “Nada bom...” O homem, vestido com avental branco, luvas e botas de borracha manchadas de sangue, era enorme. Forte, alto, extremamente robusto. Aparentava lentidão, Getúlio percebeu, mas de nada adiantava explorar o ponto fraco do inimigo quando se estava naquela situação. Trazia consigo um rolo de lona. Puxou um balcão de inox ruidosamente até perto de onde Getúlio estava pendurado e desfraldou, de dentro do bolso frontal do avental, seus instrumentos de cutelaria. Um verdadeiro açougueiro.
- Señor, por favor, las luces. - A voz rouca saiu arranhando o bigode negro e engordurado que se despejava sobre a boca do indivíduo.
O Embaixador atendeu ao pedido de seu lacaio. Com um estalo, todas as luzes fluorescentes acenderam-se ao mesmo tempo. O ambiente, antes desolador, agora ao menos revelava uma vastidão gelada porém bem iluminada, praticamente sem sombras. Junto com a luz, Getúlio Borges percebeu que o frio dera uma suave diminuída. Nada expressivo, mas o suficiente para sobreviver mais alguns minutos. Até el Carnicero terminar seu serviço, pelo menos.
- Sabe, Getúlio – Getúlio não estava gostando da intimidade que o Embaixador imprimia na conversa – não penses tu que toda a Argentina te quer morto. Com certeza uma boa parte, especialmente a população civil, tão facilmente manipulada pelo controle da mídia. Mas te garanto que a cúpula militar do Generalato te reserva alternativas. - O olhar de Getúlio se empertigou. O Embaixador, sem dar importância às reações do sargento, continuou – Bem, não exatamente alternativas à tua escolha, mas alternativas à morte...
Por entre os dentes travados em virtude do frio, Getúlio murmurou:
- E el Carnicero? Veio cortar a carne pro churrasco?
- Pode-se dizer que sim. - E então os argentinos se olharam e riram, alto. As risadas ecoaram na sala. Getúlio empertigou-se ainda mais. - Nós reconhecemos o excepcional soldado que és, Getúlio. Não temos em nossas tropas algum homem com as tuas qualidades ao serviço militar. Mas isso está prestes a mudar. E é por isso que ainda estás vivo.
- Eu jamais cruzarei a fronteira e servirei à ditadura do Generalato...
- Ora, quem disse que terias de fazer isso?
O Embaixador apenas meneou a cabeça e el Carnicero começou a afiar sua faca de cabo de osso artesanal, ao melhor estilo gaúcho do passado. A lâmina, levemente curvada para dentro, de aço russo Zvetlaya, fazia anos roubara a preferência sobre as antigas facas Solinge. A chaira igualmente impressionava. À medida que os fortes braços deslizavam a lâmina da faca em movimentos rítmicos, o aço magnetizado afiava a faca com um som suave e ao mesmo tempo apavorante.
- Getúlio, tu podes não desejar ser argentino, mas nós somos tão gaúchos quanto tua nova República. Tudo o que queremos é que pagues a dívida que contraíste naquele cassino uruguaio.
El Carnicero se aproximou de Getúlio. Borges tentou movimentar-se, mas isso apenas lhe rendeu alguns socos. A mão pesada feito pedra del Carnicero acertara o rim de Getúlio, que gemeu de dor. Com a ponta da faca, o brutamontes argentino cortou as calças e roupa íntima de Getúlio. Então, nu, Getúlio compreendeu tudo. Esperneou o que pode, até que teve suas pernas amarradas, cada uma, a uma peça de carne de aproximadamente duzentos quilos. De pernas abertas, com seu sexo balançando, Getúlio sentiu medo. A antecipação do maior pavor que vivenciaria.
O incidente no Casino Master Conrad, em Punta del Este, finalmente escapou do passado para lhe assombrar. Por causa de umas doses de puro whisky irlandês a mais, a missão fracassara e o Generalato lhe pusera um preço por sua cabeça. Mas ao que tudo indicava, não apenas sobre sua cabeça.
- Getúlio, sinta-se honrado, pois em breve serás o novo modelo de um exército feito à tua imagem. Precisamos apenas colher o material genético in loco para a produção dos pseudo-clones.
A angústia, mais que o frio, fazia sua masculinidade encolher. Pseudo-clones eram gerados em laboratório, em úteros artificiais, a partir de óvulos e embriões descartados nas fertilizações in vitro e manipulados geneticamente para receber o DNA de um indivíduo específico. Normalmente a manipulação genética era feita a partir de células sexuais (espermatozóides) como meio de assegurar a viabilidade e sobrevivência do embrião. Por isso a câmara frigorífica. Não estava sendo torturado. Estava sendo preservado.
Getúlio sabia que em questão de segundos, teria seus testículos capados.
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