Muito importante para todos os que lerem as postagens: por vezes estarei falando sério, postando opiniões próprias. Outras vezes estarei brincando com opiniões que poderiam ser minhas, mas não são. E por vezes postarei material totalmente fictício, frutos da imaginação e talvez um pouco influenciados pelas experiências acumuladas ao longo dos anos.
Distinguir o que é realidade e o que é ficção fica a cargo de cada um.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

No Quarto Escuro

No quarto escuro, somente a luz vermelha do televisor desligado era visivel. Na cabeceira da cama, uma camiseta usada escondia o display do rádio-relogio que indicava ser doze pras duas da madrugada. Élio dormia um sono agitado, desconfortável com o calor. Mais que isso, dormia tristemente, depressivamente. Após rolar na cama até os lençóis cairem no chão, uma tristeza profunda fez com que acordasse quase chorando. Sabia que não havia razão para as lágrimas, mas não conseguia impedir. No quarto escuro, sentado ao pé da cama, a triste figura contorcia-se em desespero, como se uma tragédia estivesse por vir.

Fazia alguns anos que enfrentava um tristeza sem sentido. Depressão. Nem parecia mais com o jovem que alegre e de riso fácil que todos apontavam como um lider natural capaz de inspirar seus colegas. Ali, no escuro, quilos e quilos mais gordo, parecia uma sombra de ser humano, dominado pela angustia e pelo desespero de sofrer miseravelmente sem razão nenhuma. Ao pensar em como começou a tristeza, não era capaz de dizer. Buscava incessantemente uma explicação racional para explicar o ponto a que chegara. Não havia explicação nenhuma. E isso, por si só, parecia aumentar ainda mais o desespero de Élio.

Recolhido em seu quarto escuro, não permitia nem mesmo que a luz da noite adentrasse seu quarto. Achava que assim seria capaz de esconder sua fraqueza, sua maldição. De repente levantou-se. Caminhava em circulos, o rosto em lágrimas, os braços agitados, a respiração ofegante. Parecia argumentar consigo mesmo, um debate contra si próprio, e a sensação era a de que perdia a discussão. Sua agitação fez com que a angustia da tristeza aumentasse, pois não conseguia livrar-se do sentimento de miséria. Tentou lembrar de seu último sorriso, e o que lembrou foi pior que uma faca atravessando seu coração. Não entendia porque não podia ser feliz. Justo ele que tinha conquistado tudo o que sonhara, com méritos próprios. Justo ele que era tido como um jovem exemplar e pronto para o futuro. O que acontecera então que não conseguia livrar-se daquele buraco em sua alma?

O desepero foi tomando conta. Não aguentava mais. As cólicas provocadas pelos prantos há muito viraram uma dor fisica que não mais podia suportar. Onde estava a salvação? Em pé em seu quarto, seu comportamento nervoso e desesperado não era capaz de acordar sua esposa que dormia profundamente ao seu lado após um dia exaustivo de trabalho. Ao olhá-la, Élio sentiu desprezo de si próprio. Como podia deixar a mulher que amava enfrentar sozinha o fardo de manter o casamento enquanto ele fingia uma vida normal? Como podia encarar o fato de esconder-se diarimente em seu escritório, sem ter contato com outras pessoas, com vergonha do que se tornara? Não suportava a humilhação de ser menos homem do que desejava ser.

Ao natural, sem perceber, saiu do quarto caminhando. As lágrimas pararam de escorrer. Parecia firme, resoluto, como desejava diariamente. Não havia tomado nenhuma decisão. Simplesmente sabia o que fazer. Pela primeira vez em meses, tinha certeza do que fazer. Iria por um fim à depressão.

Sentado à mesa de seu escritório doméstico montado no quarto ao lado, Élio abriu a primeira gaveta do gaveteiro embutido. Do fundo, tirou de dentro o revólver calibre trinta e dois que fora de seu bisavô. Uma raridade: um Smith-Weston com cabo de madrepérola. A mesma arma com que o seu antepassado havia tirado a própria vida.

Com uma tranquilidade de causar inveja, pegou a caixa de munição e carregou o tambor com cinco balas, deixando apenas um espaço livre. Apagou a luz de cabeceira e reclinou-se na cadeira de trabalho que estranhamente parecia mais confortável que da última vez que ali sentara para trabalhar. Abriu a janela. O ar da noite era reconfortavelmente bom. Uma brisa fresca vinha com o vento leste, anunciando chuva. Ainda com o revolver na mão, fixou o olhar no prédio em frente. Não sabia o que procurava, apenas olhava como se admirasse o que via. Bem devagar, girou o tambor do revolver várias vezes, dando ao destino uma chance em seis de mantê-lo vivo. Engatilhou a arma. A sensação que percorreu seu corpo era estranha, afinal em seus trinta e três anos de vida jamais havia disparado um tiro sequer. Mesmo estranha, a sensação pareceu-lhe boa. Tão boa que se perguntava porque não havia feito isso antes.

Foi então que percebeu, no relógio de sua mesa de trabalho, iluminada pelas luzes da rua, que já eram cinco e meia da manhã. Em alguns minutos o sol da alvorada iria nascer no horizonte. Logo depois, Ângela, sua esposa, acordaria para mais um dia de trabalho. Foi então que percebeu que o braço com o qual segurava a arma parecia pesado. Somente então se deu por conta que o revólver não estava encostado na sua tempora, como planejara. Concentrou-se então para levantar o braço e por a arma em posição. Aquilo terminaria hoje e agora, pensou. Seu braço tremia, sua mão não conseguia manter a força para segurar a arma. Precisou do auxilio da mão esquerda para erguer o revolver em posição.

Sua coragem fugia de seu corpo. Ficou gelado, suando frio. Seu estômago parecia girar dentro de sua barriga, como quando ficava nervoso e com medo ainda criança, mas fazia pose de bravo para os a sua volta. Não sentia mais seus pés. Sua boca ficou seca, seus olhos se apertaram, uma vez mais inundados em lágrimas. Não tinha mais volta. Era preciso acabar com o sofrimento. No quarto de casal, o alarme do rádio-relogio ligou, abafado pela camiseta. A música que Ângela escolheu para dançarem no casamento estava tocando. Élio sorriu um sorriso nervoso, sofrido.

Nenhum sorriso jamais deveria ser tão doloroso na alma de alguém.

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Ângela acordou de susto, com o coração em disparada.

Sempre era assim quando dormia fundo e o telefone tocava chamando-a para atender um paciente de última hora. Mesmo qando viajavam em férias e Élio insistia que desligasse os telefones, bastava o motor do frigobar do quarto de hotel religar na madrugada para que levasse um susto e acordasse sentada na cama.

Mas dessa vez era diferente. O barulho que lhe acordara foi tão forte, e a sensação na boca tão amarga que sentiu vontade de vomitar. Somente então, retornando aos seus sentidos, sentiu o cheiro de pólvora que vinha do quarto ao lado. Chocada, com medo, virou-se para o lado oposto da cama para descobrir, horrizada, que Élio não estava lá. Um desespero tão grande tomou-lhe conta que saiu semi-nua da cama, aos berros.

O sol já nascera no horizonte e se escondia atrás dos edifícios da cidade, mas o quarto onde Élio montara seu escritório estava plenamente iluminado. Ângela parou na porta, assustada, apavorada, e caiu de joelhos no chão, aos prantos. Em minutos, teria que ligar para o trabalho e informar que não iria aparecer. Não conseguia pensar no que dizer para justificar sua ausência. Apenas deitou-se no chão, encolheu as pernas e apertour os braços em volta da barriga. Aquilo era demais para suportar.

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Na cozinha, sentados na mesa do café da manhã, Ângela e Élio tentavam comer. Eram mais de dez horas quando ela finalmente reuniu forças para falar algo.
- Por quê?
- Não sei – respondeu Élio, ainda com o rosto inchado da noite insone.
- O que tá acontecendo, Bem?
Chamavam-se de “Bem” um ao outro na intimidade, algo que traziam desde os tempos de namoro.
- E-eu não sei. Não aguento mais chorar.
- Mas pra quê dar um tiro na parede? Eu nunca senti tanto medo e...
Foi interrompida pelo giro de corpo de Élio. Sentado no banco de madeira da cozinha, girou até ficar de frente para Ângela e, pegando-lhe as mãos, balbuciou em voz baixa, praticamente inaudível, enquanto olhava para o chão: - Eu não atirei na parede.
- Ãhn?
- EU NÃO ATIREI NA PAREDE! – gritou Élio, levantando-se do banco e apoiando-se no balcão da pia.
Os olhos de Ângela arregalaram-se e o pânico tomou conta de seu rosto. Engoliu em seco, levantou do banco e aproximou-se de Élio. De leve, tocou com as palmas das mãos nos braços do marido, e com uma força interior imensa, acalmou seu tom de voz.
- Como assim?
- Eu errei o tiro. Eu errei o tiro. – Élio chorava aos prantos, repetindo a frase em meio aos soluços, e caiu sentado no taÉlio sujo da cozinha, joelhos dobrados e braços em volta. Eu tentei... Eu quis.. Sabe? Eu atirei e errei. Errei porque minha mão tremia tanto e o gatilho parecia tão pesado que na hora do disparo a arma emborcou e o tiro saiu desviado. Eu sou tão inútil que nem me matar eu consigui...
Ângela chorava junto ao marido. Abraçou-lhe e tentava acalmá-lo. Não tinha ideia de que seu marido poderia tentar algo desse tipo. Estavam juntos há dez anos e ela sempre sabia quando ele tinha algo a lhe perturbar. Onde foi que errara então? O que aconteceu para que chegasse a esse ponto? Como pode deixar tudo isso passar desapercebido?
- Élio, olha pra mim – sua voz ainda era marcada pelo choro. Élio olhou-a, com os olhos vermelhos incapazes de esconder a vergonha que sentia. Élio, a gente vai procurar ajuda e vamos superar isso juntos , O.K.?
Élio estava incapaz de falar e apenas balançou a cabeça afirmativamente.
- Nós vamos superar isso, tá? Vamos descansar um pouco e amanhã de manhã marcamos um psiquiatra pra ti.
Sentados no chão da cozinha, Ângela abraçava Élio como se fosse ela, e não ele, uma gigante. Mantinha a cabeça de Élio entre seus seios, e em voz baixa, tentava fazê-lo parar de chorar.
Sempre fora assim. Desde que se conheceram, era ela quem tinha de ser a mais forte emocionalmente. As crises que marcaram fases do relacionamente sempre foram resolvidas por ela – invariavelmente seguidas por horas e horas de pranto de Élio. Ângela realmente não se importava com alta emotividade – ou falta de controle emocional – de Élio. Afinal, ele era extremamente inteligente e capaz. Em assuntos profissionais, em oposição aos assuntos pessoais e familiares, era Élio quem se destacava. Como fora, então, que deixou de perceber que seu marido estava no limite da depressão? Logo ela, médica, deixou de ver os sintomas de uma clássica e severa depressão. Por mais doloroso que fosse, sabia que não podia se entregar à culpa. Devia ser forte por ambos, por mais desgastante que fosse.
Amanhã eles começariam novas vidas.

Um comentário:

  1. Essa história creio ser a que melhor consegui expressar aquilo desejava. Leio e releio o texto e julgo que ficou bom.
    Não questiono a qualidade do texto (ou a sua falta), mas fiquei satisfeito com o resultado final.

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