Muito importante para todos os que lerem as postagens: por vezes estarei falando sério, postando opiniões próprias. Outras vezes estarei brincando com opiniões que poderiam ser minhas, mas não são. E por vezes postarei material totalmente fictício, frutos da imaginação e talvez um pouco influenciados pelas experiências acumuladas ao longo dos anos.
Distinguir o que é realidade e o que é ficção fica a cargo de cada um.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

S.O.S.

S.O.S.

Era tudo o que a mensagem recebida por Fabricio em seu celular dizia.

S.O.S.

Fabricio recém deitara quando o seu celular, esquecido no criado mudo, vibrou subitamente, iluminando o teto do quarto com sua luz pálida. Uma mensagem durante a madrugada costuma causar preocupações, mas aquela fez com que Fabricio perdesse o sono.

Acordado, foi até a cozinha de seu pequeno apartamento JK. Precisava refletir aquela mensagem. Abriu sua geladeira General Eletric velha de cor azul – herança de uma tia avó – e pegou uma lata de cerveja. Praguejou contra a geladeira, incapaz de gelar a cerveja.

Sentou-se à mesa da cozinha em um banco de madeira, desconfortável para um homem de um metro e noventa e cinco como ele, e serviu a cerveja – ele jurava que estava morna – em uma xícara suja esquecida ali desde o café da manhã.

S.O.S.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 11: Despertar

O calor fustigante, persistente, subitamente deu lugar a uma tormenta de verão. Nada incomum, aliás. Mesmo nos dias atuais, Aline impressionava-se com a força dos temporais que se abatiam sobre o Rio Grande do Sul após dias de extremo calor.

Desde a independência, missões de sabotagem de comícios politicos contra a ordem militar consumiam suas energias. Aline chegara de sua última missão e foi direto para casa. No apartamento de Aline Straussmann, situado no Quarteirão Militar, no Nivel Superior do bairro Higienópolis, as janelas, todas elas revestidas com película de proteção balística, estavam fechadas para manter do lado de fora a chuva, tóxica devido à poluição. Chegou ensopada. Tinha apenas alguns minutos antes que que sua pele passasse a absorver as toxinas cancerígenas. Apesar do alívio no calor, a chuva era tão ou mais perigosa quanto o sol.

Após um banho revigorante, ainda nua, jogou-se na cama para um merecido descanso. Os lençóis de linho ofereciam uma sutileza peculiar no ambiente frio e estéril do apartamento de Aline. Seu corpo de pele macia e de curvas provocantes apresentava marcas típicas a todos os militares de participação ativa na guerra. Mesmo ela, uma oficial das sombras, possuía “medalhas”, incapazes, contudo, de tirar-lhe a beleza e a sensualidade.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 10: Dia da Independência

O calor que se abateu em Porto Alegre nas ultimas semanas era pavoroso. Jamais a Unidade de Metereologia havia registrado temperaturas tão altas na capital dos gaúchos. As árvores sobreviviam apenas nas regiões protegidas por escudos de ozônio. Na Extrema Zona Norte, a vegetação queimava como pasto seco. Durante a onda de calor – atribuída por cientistas a uma erupção solar – a cidade ganhava vida apenas à noite.

Getúlio esperou o sol se por para sair de casa e procurar um lugar para almoçar. Era estranho ter tempo livre, mas não passava por sua cabeça reclamar da folga recebida. Após tanto tempo usando uniformes, a roupa civil parecia desconfortável. O tênis Adidas, a camiseta de futebol e até mesmo suas calças jeans haviam sido fabricadas na China. Para um homem do tamanho de Getúlio, roupas chinesas eram sempre apertadas.


Caminhando a esmo pelo Nível Inferior da Avenida Farrapos, lembrou dos momentos com seu pai e de como ele contava que um dia a cidade tivera apenas um andar. Era estranho imaginar grandes centros urbanos, como Porto Alegre, com mais de cinco milhões de habitantes, sem a construção de níveis. Na prática, alguns bairros inteiros passaram a ser subterrâneos na medida em que a cidade crescia cobrindo o céu. O Nível Inferior, portanto, guardava a antiga Porto Alegre.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 9: Cúpula Militar

A Major Aline Staussmann era a única mulher oficial da Força Sombra. Em um ambiente machista, ela conquistou o respeito de todos. Sua competência e lealdade eram inquestionaveis. Todos lembravam do episódio alguns anos antes, quando, cumprindo ordens da cúpula militar gaucha, assassinou a então Supervisora do Estado.

A Supervisora, indicada pelo já então Ministro da Justiça, Segurança e Bem-Estar, viera de São Paulo para administrar os gaúchos com mão de ferro. Desde sua chegada, animosidades politicas reacenderam e inflamaram antigas pautas separatistas. A Assembleia Legislativa, apesar de seu papel puramente figurativo em razão do tradicionalismo gaúcho, foi dissolvida pela primeira vez na história do Império. Foi então que o Partido Pela Independência, atuando na clandestinidade, iniciou uma campanha popular pela desmoralização da Supervisão do Império no Rio Grande do Sul. Acusações de corrupção e desvio de dinheiro público eram apenas o início. Suspeitas de favorecimentos e desvios de dinheiro público em favor de empresas situadas em Brasília e São Paulo eram veiculadas em sites na Internet com base no exterior. A mídia impressa, de rádio e de televisão estava sob o controle da Polícia Ideológica e do Ministério da Informação Oficial, mas a Internet permanecia livre, para o desespero da Supervisora. Em resposta, com a concordância do Ministro da Justiça, foi decretada a execução sumária de qualquer um suspeito de colaborar com o PPI.

domingo, 25 de outubro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 8: Baixas

Na sala de espera do Hospital dos Veteranos de Guerra, em Porto Alegre, Getúlio esperava impacientemente ao lado da máquina de café. O HVGPA, construído na zona de sul da Capital, apresentava o mais moderno centro cirúrgico para tratamento de feridos de guerras no sul do continente americano. “Impressionante”, pensou, “toda a tecnologia do mundo e não são capazes de comprar uma máquina que faça um café decente.” Quando a enfermeira apareceu na porta, de súbito ficou em pé.

- Como ele está? – perguntou Getúlio.

- Vivo. Mas os médicos não sabem dizer quando ou se irá acordar.

A notícia fez com que a expressão na rosto de Getúlio se endurecesse ainda mais. Na verdade, não tinha nenhuma empatia pelo tenente Douglas Zuchinni. Mas como soldado, não podia deixar de se solidarizar. Podia ser ele, Getúlio, deitado naquela maca da UTI. Sabia que o jovem oficial tinha apenas setenta e duas horas para apresentar melhoras significativas que permitissem aos médicos concluírem que teria uma chance de recuperação superior a oitenta porcento. Do contrário, seria recondicionado para o campo de batalha. E esse pensamento fazia Getúlio sentir um frio na espinha.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 7: Invasão de Domicílio

Arnaldo de Sá Magalhães Sobrinho – o Arnaldinho – saboreava um fino licor de damasco com um sorriso nos lábios. A pressão de seus superiores havia diminuído, graças ao seu sucesso em Itaipu. O serviço de inteligência das Polícias Ideológicas estava certo: o Rio Grande do Sul planejava uma investida contra Itaipu I e II. Todavia, a ordem dada por Arnaldinho para o remanejamento das tropas anteriormente estacionadas em Florianópolis para a proteção das duas maiores hidrelétricas do mundo interrompei o avanço do comboio militar dos sulistas. Por certo ficaram amedontrados com as defesas planejadas, a ponto de fugirem para território argentino. O sabor da vitória era doce. E com um teor alcoólico de vinte e cinco por cento.

Arnaldinho foi até o bar que mantinha no fundo de seu escritório domiciliar para servir mais uma dose. Foi nesse momento que sua secretária particular suavemente abriu a porta. Ele nunca vira mulher mais estranha. De jeito algum poderia ser considerada bonita, e para piorar, usava roupas masculinas. Arnaldinho a havia empregado como retribuição ao lobby exercido por um dono de laboratório farmacêutico amigo de sua família em sua campanha para a chefe da Polícia Ideológica. Segundo fora informado, ela possuiria habilidades que possivelmente lhe fizesse a melhor secretária em toda a estrutura burocrática da região sul. Ali, na calada da noite, degustando seu licor de damasco, Arnaldo teve de reconhecer que ela era realmente uma excelente funcionária.

- Senhor, houve uma explosão na Ponte de Acesso 3. Alguma ordem?

sábado, 17 de outubro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 6: Plano B

- Merda. Puta que pariu.

Os impropérios eram um desabafo. O plano de sair do continente e ingressar na Ilha de Santa Catarina através do mar, na calada da noite, não podia mais ser levado adiante. Getúlio não estava desapontado, mas sim irritado com as falhas na estratégia elaborada pelo Tenente Douglas. Na verdade, estava irritado com o próprio Tenente Douglas. A estratégia que fosse para o inferno.

Douglas era um guri de apenas dezessete anos. Alistou-se no serviço militar gaúcho com apenas quatorze anos, quando os coronéis da Brigada começaram a articular a criação de um exército insurgente. Douglas Zuchinni, ao saber do alistamento, convenceu seus pais a assinarem a autorização para a incorporação na Força Sombra, o Comando de Operações Secretas e Especiais – também chamado de Quarta Força. Disse-lhes que era uma viagem de colégio até o litoral. Apenas não podia imaginar que sua astúcia lhe renderia treinamento especial no Centro de Preparação de Oficiais das Sombras – CPOS. Desde então, nunca mais viu seus pais, em Caxias do Sul.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 5: Preparativos

Atravessar a fronteira e ingressar em território pan-brasileiro não foi nada fácil. As trilhas percorridas por três dias e quatro noites através dos canyons a partir de Cambará do Sul escondiam perigos e eram surpreendentemente bem vigiadas pelos postos de fronteira. Mas a tarefa, quando comparada a invadir a Zona de Segurança Burocrática na Ilha de Florianópolis, mais parecia um passeio no shopping. Esse sim seria o grande desafio.

A noite era fria e úmida. Desde a destruição da porção meridional da camada de ozônio, os hábitos das populacões pasaram por transformações. A vida noturna se intensificou e muitas empresas passaram a adotar o horário comercial durante a madrugada. Durante o dia, apenas locais protegidos por escudos de ozônio, criados a partir de escassas e caríssimas torres de geração, abrigavam algum tipo de movimento ou agito. A noite, portanto, não representaria nenhum auxilio na misão de invadir a residência oficial do Chefe Regional da Policia Ideológica.

Getúlio, quieto e pensativo, preparava-se para a execução da missão. O esconderijo escolhido – uma maloca a apenas alguns quilometros da ponte de acesso à ilha – era sujo e fétido. O local ideeal para todos os ratos e baratas que ali estavam. Por outro lado, Getúlio ficou surpreso com a preparação do Exército Farroupilha. Qualquer equipamento que pudesse pensar necessário estava a sua disposição.

Somente ao preparar um estojo com injeções morfina percebeu que o ferimento em seu ombro não mais doía. Em verdade, desde a noite em que Aline invadiu sua tenda camuflada, durante um descanso noturno na travessia da fronteira, não sentia mais o desconforto.

Deixou seus preparativos de lado. Apoiado numa mesa suja de graxa, de frente para a parede de tábuas de madeira, Getúlio pedeu-se em seus pensamentos. Não conseguia decifrar aquela mulher. Sempre que ela lhe dirigia a palavra, era com arrogância e petulância. Quando lhe dirigia um olhar, era com lascívia e desprezo ao mesmo tempo. Mas naquela noite ela se entregara de corpo e alma. “Será mesmo?” Refletiu, pensou e não conseguiu chegar a nenhuma conclusão. Por certo Getúlio gostara de ter em suas mãos um corpo perfeito como o de Aline. Todavia, o ato sexual em si fora por demais agressivo, de ambas as partes, para que pudesse haver uma entrega – ao menos da alma. E tão logo ficou satisfeita, ela lhe dera um sorriso e, ainda se vestindo, deixou-o sozinho, nu, de costas no chão frio. O que significara aquilo?

- Todos prontos? Sargento Borges?

A voz de Aline, com imponência e altivez habitual, tirou Getúlio de seus pensamentos. Ao se virar, notou que o grupo, formado por mais três soldados de elite e pela própria Major Straussman, estava apenas lhe esperando.

Getúlio então assumiu seu lado militar. Tirou de sua mente qualquer pensamento que não o objetivo da missão. Seu rosto visivelmente perdeu qualquer traço de sentimento ou expressão. Faltavam apenas alguns detalhes. Aplicou sobre o ombro ferido Emplasto Poroso Sabiá com anestésico. Jogou nas costas sua pequena mochila com os equipamentos para a missão. E então, com satisfação e capricho apanhou suas armas. Uma pistola automática Glock-Smith .45 série GS31 com silenciador, para a sutileza. Uma antiga Ithaca 37 calibre 12 com cartuchos explosivos para a grosseria. E o seu revólver Cambará .38 com balas de Césio 37, para seu divertimento.

Na saída do esconderijo, com Getúlio tomando a dianteira do grupo, a Major Aline Straussmann soube que escolhera o homem perfeito.

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sábado, 3 de outubro de 2009

Carazinho

Existem lugares que marcam a memória. Na verdade, o correto seria dizer que há lugares que marcam os corações, pois as lembranças que ficam normalmente vem carregadas de sentimentos. Invariavelmente, a maioria de tais lugares “especiais” está presente na infância de cada um, o que explica a nostalgia que sentimos ao buscar na memória as lembranças que lhe são associadas.

Para mim, Carazinho é este lugar. Cidade pequena no interior do estado, foi lá que passei a maior parte do convívio com meus avós maternos. Quando criança, minhas férias de inverno, sem excepção, eram lá. E todos os Natais também. Anualmente, sair de Porto Alegre – pior, sair da Capital – para ir a Carazinho significava dias dentro de casa, sem nenhum programa interessante para fazer, sem amigos, sem videogame. Apenas a constante e agradável companhia do meu vô Aldo, minha vó Artêmia e minha tia-avó Aida. Não à toa foi por lá que adquiri o saudável hábito da leitura.

Com o passar dos anos, as visitas à Carazinho – e digo assim, “visitas a Carazinho” porque para mim ir a Carazinho era o mesmo que visitar o vô e avó – foram minguando. Veio a adolescencia e com ela as mudanças de prioridades nos períodos de férias. Pior ainda quando ingressei na faculdade. As visitas aos velhinhos, que eram fonte de amor e carinho inesgotáveis, passaram a ser eventuais, em escassos fins de semana. Apenas o Natal permanecia firme e forte.

Pensar em Carazinho é um convite a lembrar de cada momento que tive na companhia especial deles. Cada esquina da cidade esconde uma lembrança de algum momento com um dos três velhinhos. Cada lembrança é uma parte do que sou hoje. Foi lá que foi diagnosticada minha miopia e que meu avô me levou para fazer meus primeiros óculos. Foi lá que aprendi a jogar canastra e pontinho. Foi em Carazinho que ganhei de presente minha primeira camiseta do Grêmio. A lista de momentos não tem fim.

Infelizmente, minhas ultimas idas à Carazinho, ainda que repletas de lembranças e sentimentos, foram motivadas pelas mortes de meus avós e minha tia. Até mesmo pela questão profissional, coube a mim responder pelos espólios e resolver os negócios da família.

No último fim de semana retornei a Carazinho. A viagem de ônibus me permitiu terminar a leitura de um romance de John Grisham, “A Casa Pintada”. A história, narrada em primeira pessoa, conta o cotidiano de um garoto de sete anos que vive com seus pais e seus avós em uma fazenda de algodão no sul dos Estados Unidos. A história se passa nos anos 1950 e percebe-se pela narração a nostalgia com que o Autor evoca os momentos descritos no livro. Há, evidentemente, uma forte inspiração em “As Aventuras de Tom Sawyer”, de Mark Twain, mas isso evidentemente é algo positivo.

O que realmente salta aos olhos é o conflito, na mente infantil, entre o sonho de se tornar jogador profissional de beisebol em uma cidade grande e abandonar a vida na fazenda com seus avós e o desejo de permanecer na companhia daqueles que se ama. A cada momento da leitura, não pude deixar de comparar os momentos do protagonista Luke Chandler com seus avós com os meus próprios momentos com meus avós. A impressionante caracterização da vida cotidiana de uma pequena cidade no interior do Arkansas me fez pensar – resguardadas as devidas proporções, evidentemente – nos meus dias de criança quando viajava a Carazinho para ficar na companhia de meus avós.

Ao terminar de ler o livro, estava emocionado. Por certo que a ótima habilidade do autor, autor de “A Firma” e “O Dossiê Pelicano”, entre outros best-sellers, é indiscutível. Mas ao terminar a leitura eu já estava em viagem de volta para Porto Alegre. Dessa vez, fui a Carazinho para assinar a venda do último apartamento que pertencia a família. E foi então que percebi e meus olhos se encheram de lágrimas.

Carazinho nunca mais.

Gauchos das Sombras - Cap. 4: Novos Objetivos

O comboio militar que avançava do sul em direção ao que outrora fora a Tríplice Fronteira era impressionante. Proporcionalmente, era como se quase um terço de toda a população do novo Estado Gaúcho estivesse a serviço do Exército Farroupilha. Homens e mulheres. Somando-se os soldados aos ciborgues, o novo país teria plenas condições de manter sua insurgência contra o poderoso Império ao norte. O comboio, formado por transportes blindados de combate LAV-9 TaurusRS, apesar da defasagem tecnológica, tinha a vantagem de contar com geradores móveis de ozônio, o que permitia o avanço mesmo durante o horário crítico do meio-dia.

Na parte posterior do coboio, um furgão civil adaptado para servir ao exército farroupilha pela Motores Gerais de Gravataí sutilmente desacelerou, até finalmente parar. Em seu interior, um exaltado Getúlio Borges tentava entender o que estava acontecendo.

- Pensei que iamos para Itaipu. Qual a razão dessa parada? Em minutos ficaremos fora da área de proteção do escudo de ozônio – o timbre da voz de Getúlio demonstrava claramente sua irritação.

- E pensaste certo, Sargento Borges – a voz da Major Aline Strausmann era calma e confiante. Mesmo com o calor no interior do veículo, o alinhamento do uniforme de Aline era impecávelmente sensual. - A cúpula militar não podia correr o risco de ter os planos interceptados pelas milicias nortistas que ainda resistem. Por isso optamos por manter a real missão em segredo até este momento.

- Que real missão? Pela sutileza com que fui recrutado eu esperava ao menos saber quais minhas missões seriam.

- Getúlio – agora a voz de Aline era de deboche e escárnio – justamente pelo modo com que foste recrutado, não devias esperar nada! Apenas ordens.

O rosto de Getúlio ficou vermelho de raiva. Foi preciso usar mais do que seu treinamento militar para permanecer quieto. Quando jovem, os problemas de Getúlio com seus oficiais superiores fez com que passasse metade do serviço militar obrigatório no xadrez de sua unidade, situada em Santa Cruz do Sul. A razão pela qual permaneceu a outra metade do período em liberdade foi sua capacidade para a arte da guerra. Certa vez, em um treinamento conjunto realizado no Itaimbezinho, envolvendo todas as unidades de todo o Rio Grande do Sul das quatro forças, o cabo Borges, como era conhecido na ocasião, fora o único a receber a Estrela de Aço, ou Medalha de Honra ao Mérito Militar, para desgosto de seus comandantes. Getúlio era um soldado completo – ou quase. Faltava apenas aprender a manter a boca fechada.

- Quais são as ordens, senhora?

- Bem melhor. Toma isto – e entregou uma pasta de aço que mais parecia um prontuário médico. – Itaipu é um engodo. Com a ativação das Plantas Nucleares de Candiota I e Candiota II o Estado Gaúcho possui energia suficiente. Para que a guerra tenha um fim e possamos manter a independência, precisamos de acesso às informações da Polícia Ideológica. Somente com elas poderemos subornar o Ministro da Justiça e comprar a paz. Soldado – Aline agora empregava toda a autoridade de sua voz ao falar com o jovem à direção do veículo – leva-nos para Florianópolis. Pelas tuas habilidades e teu treinamento, Sargento, és o mais indicado para invadir a residência do Chefe da Polícia Ideológica.

Getúlio interrompeu a leitura e, com a expressão confusa, olhou para sua superiora hierárquica. Antes que pudesse perguntar algo, Major Aline Straussmann já oferecia a resposta:

- Foste escolhido, Getúlio, porque não importa o quão arriscada ou perigosa a missão seja, enquanto existir uma oferta do Generalato Argentino por tua cabeça, farás exatamente tudo o que mandarmos, da forma como queremos que faça. – Aline, acostumada a subjugar o sexo oposto, não se deu ao trabalho de disfarçar o riso no canto de seus fartos e belos lábios.

Uma vez mais com a face ruborizada pela cólera que engasgava em sua garganta, Getúlio deixou escapar um pequeno sussurro. Um pequeno, raivoso, quase inaudível comentário em conformidade com seu temperamento:

- Cadela.

- Disseste alguma coisa?

- Não, senhora. Missão dada, missão cumprida. Para Florianópolis.

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terça-feira, 22 de setembro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 3: Pontos Estratégicos

A Revolução Farroupilha, passados tantos anos, não passava de um símbolo. A história, revista e reescrita sucessivamente por todos os vieses ideológicos se perdera. Sobrou a Internet. Nela o poder do estado jamais conseguiu por suas mãos – e as tentativas foram muitas. Ali, na rede, a imagem dos guerreiros farrapos e de seus ideiais se misturava com o folclore e com o nacionalismo de todos os gauchos.

Os órgãos da Polícia Ideológica Imperial sabiam do problema e, por mais que tentassem reprimir, não podiam evitar que o Tradicionalismo fizesse seu trabalho. Através de movimentos subversivos, a população inteira do sul nascria e crescia condicionada a amar sua terra e a reconhecer no Norte seu inimigo. O mal vinha do Norte. Somente com a separação o Sul poderia crescer e prosperar.

Arnaldo de Sá Magalhães Sobrinho sabia de todo o contexto. Fora nomeado diretamente pelo Ministro da Justiça, Segurança e Bem-Estar para chefiar a Policia Ideológica na Região Sul do Império. Nascido na Bahia, sabia bem como os sulistas ofereciam resistência aos projetos de consolidação do Império Democrático. Na realidade, não fazia questão de o Rio Grande do Sul permanecesse Pan-Brasil. Afinal, o que tinham eles a contribuir? Havia algum tempo os campos de Goiás clonavam gado sulista com sucesso, fornecendo carne bovina com o mesmo sabor e menor preço. Todas as grandes empresas do Nordeste brasileiro, apesar de originárias no Sul, pagavam propinas exclusivamente para representantes do Norte e Nordeste. O Rio Grande do Sul, para Arnaldo – e para muitos pan-brasileiros – não passava de uma chateação.

A ilha de Florianópolis, para onde mudaram-se todos os órgãos imperiais antes localizados em Porto Alegre, era o local perfeito para comadar uma contra-ofensiva aos planos dos gaúchos. A cidade, amplamente protegida pelas tropas que permaneceram leais quando do levante gaúcho, nutria um ódio aos gaúchos que garantiu a soberania sobre a parte central e leste do que outrora fora Santa Catarina. Todavia, coordenar as milicias nortistas além da fronteira e providenciar a entrega de armamento era difícil quando as atenções militares da Cúpula Imperial estavam voltadas para a completa dominação e anexação das novas provincias bolivarianas na Amazônia e Caribe. Por isso o nervosismo da cúpula: como demonstrar força e poder no norte quando o extremo sul declara independência?

Em seu escritório doméstico, Arnaldo, de chambre e chinelas, fumava um legítimo charuto portorriquenho. Na tela de sua estação de trabalho, a insignia imperial apareceu bruscamente, iluminando a quase totalidade da sala, até então mantida no escuro. Uma chamada oficial de superiores aquela hora jamais era algo bom. Arnaldo já havia apresentado uma dezena de relatórios e dados estatísticos – encomendados especialmente para agradar à Cúpula – e ainda assim as especulações de que seria removido de seu cargo ganhavam força. Arnaldo deixou de lado o copo com cachaça e mel, tentou parecer respeitável, e então atendeu à chamada.

- Boa noite, Arnaldinho. Receio que tenha más notícias – a voz, inconfundível, era denunciada pelo sotaque carioca. Na tela de 209 polegadas, era possível visualizar cristalinamente cada uma das rugas de preocupação do Sr. Ministro da Justiça, Segurança e Bem-Estar. - Você sabe que eu tenho um apreço especial por você, não é Arnaldinho?

Arnaldo não estava gostando do rumo da conversa. Sabia muito bem que o apreço existente entre ambos somente seria mencionado em uma conversa oficial se o Ministro estivesse de muito mau humor.

- Fazem apenas setenta e duas horas que enviei meu último relatório sobre o levante gaúcho, Sr. Ministro. Qual seria o problema?

A imagem do Ministro desapareceu abruptamente dando fim à conversa. Foi então que o chefe da Polícia Ideológica, responsável pela supressão do levante no Rio Grande do Sul, percebeu que poderia perder seu pesoço, como qualquer outro burocrata. Após alguns segundos de silêncio, em pleno escuro, a estação de trabalho de Arnaldo era sobrecarregada com dados enviados pelas inteligências das Polícias Ideológicas do Sudeste, Centro-Oeste e Paraguay.

Ao rodar as informações, Arnaldo apertou a campainha vermelha que ficava na parede atrás de sua mesa. O alarme de emergência convocou todos os oficiais da Policia Ideologica e das Forças Armadas da Região Sul. Em apenas alguns minutos, a grande tela de policarbono flexível trazia a imagem de mais de vinte homens e mulheres, todos uniformizados, para a conferência. Arnaldo, aos berros, sem conter o desespero, ordenou:

- Protejam Itaipu. Matem todos os gauchos. Abandonem Florianópolis. Não importa como, não podemos perder Itaipu.
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terça-feira, 15 de setembro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 2: Major Straussmann

As paredes de concreto reforçadas com frias e pesadas chapas de plutânio – uma liga de chumbo e titânio desenvolvida no Leste Europeu quando da Guerra Nuclear entre os Estados Europeus e a Grande Rússia – significavam que Getúlio fora levado até o centro de comando da Brigada Militar. A Brigada, antiga força de policiamento no do estado do Rio Grande do Sul, foi declarada clandestina pelo Ato Institucional nº52 do Império Democrático Pan-Brasileiro. Com o fim da federação, as forças policiais, civis ou militares, dos antigos Estados foram extintas. O poder de policia, como todos sabem, somente podia se exercido pela Policia Ideológica, sob o comando do Ministro da Justiça, Segurança e Bem-Estar, braço forte do Imperador.

Getúlio Borges reconhecia aquela sala. Foi ali, anos antes, que recebeu as divisas de sargento do Novo Exército Farroupilha. Naquela ocasião, se apresentara voluntariamente, por acreditar que um Estado Gaúcho independente seria a melhor alternativa para um povo ignorado e esquecido por nortistas corruptos e ingratos. A sala agora parecia melancólica, sem esperança, exatamente o oposto da última vez que ali estivera.

Os músculos de seu corpo doíam em função das amarras que o prendiam à cadeira de madeira. As cordas, velhas, sujas e poídas, estavam molhadas e cheiravam a urina. Apesar do indigno tratamento recebido, não havia marcas de violência física em seu corpo. “Ao menos não fui espancado”, pensou aliviado Getúlio.

A sala não possuía janelas, mas era bem ventilada por passagens de ar próximas ao teto. Uma única porta dava acesso, e a mesma era guardada por dois soldados enormemente fortes, com uniformes ridículos do século XXI. As tentativas de evocar o passado as vezes não passavam de uma enorme piada de mau gosto.

Foi então que a luz, antes fraca e bruxuleante tornou-se forte e luminosa. O sentimento de abandono da sala foi tomado por um de imponência, na medida em que a única porta se abriu e através dela surgiu a silhueta de uma mulher confiante e poderosa. Getúlio não pode deixar de perceber que quem entrava na sala devia gozar de altos privilégios no exército Farroupilha, pois seu uniforme, de Kevlar BSA-K6 de terceira geração, somente podia ser encontrado nos círculos de oficiais dos mais ricos exércitos do mundo. Sobre seus fartos e belos seios Getúlio pode ler: “Major Straussmann”.

- Eu mandei soltar as amarras do nosso convidado. Alguém pode me explicar por que minhas odens ainda não foram cumpridas?

Os dois soldados que guardavam a porta correram na direção de Getúlio. Os brutamontes que faziam o serviço sujo já tinham aprendido a jamais questionar as ordens da Major Aline Straussmann. Sua voz macia como seda e seu caminhar leve escondiam um agressividade e um rancor que poderia terminar com a carreira de qualquer subalterno. Ou mesmo com a vida.

Aline fitava Getúlio largado e mal acomodado na desconfortável cadeira como se não passasse de um monte de carne e por um momento se perdeu nos pensamentos. Homens para ela não passavam de objetos para a satisfação de seus desejos. Quando retomou o controle de si, arrancou a mordaça que cobria a boca de Getúlio e, suavemente, lhe estendeu um copo de água fria.

- Podes beber. É água reciclada, livre de contaminação.

Getúlio, ainda lerdo após o choque imobilizador muscular (desde seu tempo de soldado nunca entendeu porque aplicar o choque nos mamilos...), deixou escorrer pelo queixo parte da água que bebia. Era boa. O odor lembrava ainda o de suor, mas o sabor era de água limpa. Desde a explosão das pragas transgênicas nos campos, as fontes naturais de água ficaram completamente poluídas por agrotóxicos, produtos químicos e radioativos. Tudo na esperança de acabar com a nova geração de taturanas escarlates, uma espécie mutante que apareceu pela primeira vez na Grande Passo Fundo nas lavouras de soja e milho transgênicos.

Quando finalmente terminou de beber, Aline recolheu o copo d’água. Aos poucos seu olhar e sua expressão facial foi endurecendo. Ao falar, contrastavam em sua voz a firmeza de quem dá ordens e a sensualidade de quem manipula o sexo oposto.

- És um bom soldado, sr. Borges. O Novo Exército Farrapo precisa de ti uma vez mais.

- Não seria mais fácil pedir por favor?

Ambos sabiam que não. A guerra travada entre os gauchos brasileiros e os nortistas fora uma guerra de muitas sequelas. As novas tecnologias bélicas, amplamente utilizadas pelas Corporações Unidas da América do Norte no passado, espalharam-se pelo mundo. Os soldados, quando não morriam, ficavam mutilados. E os generais gaúchos, com menos população que o Pan-Brasil, adotaram um expediente assustador: com financiamento do vizinho Paraiso Fiscal Oriental del Uruguay, importaram tecnologia eurasiana de recondicionamento de soldados. Na prática, criavam-se ciborgues com restos de soldados mortos e vivos, controlados a partir de um software de comportamento inserido em uma placa de irídio embutida no cerebelo dos soldados. Por isso Novos Farrapos. Esse era um destino que Getúlio não desejava e faria de tudo para evitar.

- E seu dissesse não?, perguntou Getúlio, como uma voz desesperançada?

- Nesse caso, lhe entregaremos para o Generalato Argentino. Se bem entendo, há uma recompensa pela tua cabeça naquele país, não? O dinheiro oferecido seria muito bem vindo nos nossos esforços bélicos contra o Pan-Brasil...

Não é possível. Getúlio não podia acreditar. De olhos fechados, amaldiçoava sua sorte – ou melhor, a falta dela. Mesmo em sua terra, entre seus irmãos gauchos, o pesadelo de seu passado mercenário voltava a lhe perseguir. Dessa vez, na forma da mais pura e singela chantagem. Enfim, abriu as pálpebras cansadas, mirou secamente nos olhos da Major e disse, com a firmeza de quem não tem dúvidas:

- Quais são as ordens, senhora?

Temia morrer e ser reciclado. Temia sobreviver e ser transformado em Cibrgue Farrapo. Mas temia ainda mais os porões do Generalato Argentino.


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sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Gauchos das Sombras - Cap. 1: Recrutamento

Getúlio acordou com o sol escaldante queimando seu rosto. Na noite anterior cometera o erro de deixar as persianas bloqueadoras entreabertas. Com a destruição da camada de ozônio abaixo do Trópico de Capricórnio, a exposição ao sol era um perigo desnecessário que não precisava correr. Passou uma pomada restauradora a base de células epiteliais sintéticas que encontrara para vender em um fórum ilegal na Internet. A queimadura foi minimizada e as células danificadas pelos raios ultravioletas foram substituídas. Uma maravilha. Tecnologia japonesa.

Sentou na cama e procurou a injeção de morfina que mantinha na cabeceira. A dor da queimadura era muito forte, mas o ferimento a bala que sofrera na noite anterior doía ainda mais. Desde que o Novo Exército Farrapo levantou o Estado Gaúcho do Rio Grande do Sul contra o Império Democrático Pan-Brasileiro, a escalada da violência aumentou em demasia. Os nortistas, como eram chamados os brasileiros, que ainda residiam no novo Rio Grande do Sul quando do fim da guerra organizaram milícias armadas em defesa do Pan-Brasil. Não aceitavam que o povo do sul desejasse apagar seu passado. Em retaliação, o gabinete presidencial da nova república ordenara a prisão de todos os estrangeiros, para identificação e interrogatório.

O ferimento estava sob controle, mas ainda doía. As milícias nortistas, abastecidas com armas contrabandeadas por agentes secretos da Polícia Ideológica Pan-Brasileira pela fronteira com o que antes era o leste do Paraná, usavam munição de segunda linha, o que ao menos tornava a situação mais suportável. Getúlio levantou, evitando que os raios de sol que insistiam em entrar no quarto lhe atingissem a pele e causassem novas queimaduras. Acionou o controle manual e fechou completamente a janela com as persianas bloqueadoras. Tinha ainda três horas para dormir e descansar antes que começasse seu turno no emprego.

Quando finalmente acordou, Getúlio pode perceber que não estava sozinho no quarto. Antes que pudesse alcançar o revólver Cambará 38 de dez tiros que guardara de seu período como Soldado Farrapo, fora dissuadido de tentar qualquer movimento brusco por uma sedutora voz feminina. Somente então percebeu que não estava sendo assaltado. Estava sendo recrutado. Não sabia ainda por quem.

Soube apenas que o imobilizador muscular usado doía ainda mais que um tiro ou uma queimadura por raios ultravioletas.



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domingo, 30 de agosto de 2009

A pior das noites

O sol ainda não havia nascido quando o despertador tocou. Na verdade, o que tocou era o telefone celular dele deixado na cabeceira da cama, no lado oposto em que ela dorme. Os lençóis estavam revirados. As cobertas, caídas ao chão. A noite foi dolorida, sofrida e sobretudo mal dormida. Os olhos dela ardiam das lágrimas que ainda agora continuavam a marcar sua face. E o despertador a tocar.

O dia estava prestes a começar, mas ela não podia imaginar por onde começar. A discussão na noite anterior e a dor do choro que durou toda a madrugada eram quase impossíveis de suportar, mas ainda assim não eram nada em comparação a encontrar a cama vazia ao acordar. Pela primeira vez em anos ele não dormira em casa, nem sequer no sofá. E o dia exigia que ela levantasse e fosse tomar o café da manhã.

A cozinha, toda branca, estava igual. As panelas, ainda com comida, juntavam formigas no fogão. No chão, os pratos quebrados com restos de comida, jogados ali no calor da discussão. Entrar naquele ambiente era difícil para ela. Não apenas pela dificuldade de circular em meio ao caos, mas pela sensação de ouvir as paredes repetindo as agressões e insultos proferidos a menos de dez horas atrás.
O café preto não foi capaz de lhe animar, mas após enxaguar bem o rosto foi possível disfarçar as lágrimas. Sorte que a previsão era de sol forte, pois assim poderia usar os óculos escuros para disfarçar as olheiras. Ela colocou sua melhor roupa, mesmo sendo apenas mais um dia de trabalho, como se assim fosse possível elever seu espírito. Por mais que desejasse, não conseguia parar de pensar nele. Onde estava? Onde dormiu? Será que ele conseguiu dormir? Por que não levou a droga do celular? Por que ele fez aquilo?

Preferiu ir de táxi para o trabalho. Apesar dele ter tido a decência de deixar o carro na garagem de casa, ela sabia que não estava em condições de dirigir até o trabalho. Será que ele estaria lá? Evidente que ele iria trabalhar, nunca faltava, mesmo quando doente. Era preciso que o próprio diretor da empresa lhe mandasse para casa. Trabalhavam juntos a tanto tempo que a rotina sozinha lhe era estranha. Como seria o ambiente de trabalho, com os demais colegas lhe perguntando onde estava seu marido?

Apesar de todo o acontecido, chegou na hora para o trabalho. Não que lhe fosse exigido o cumprimento de horário. Na condição de sub-diretora, ela gozava de alguns privilégios. Mas mesmo assim, lá estava ela, pronta para o trabalho e sozinha na repartição. Nenhum de seus colegas havia chegado para o trabalho. Nem mesmo ele. Sozinha e deprimida, sentou em sua sala e engoliu o choro que tentava emergir. Tapou a boca com as costas da mão e engoliu em seco. Naquele momento, não soube precisar se a dor que sentiu em sua garganta tinha origem física ou psicológica. Permaneceu sentada, em silêncio, até que, sem perceber, fechou os olhos e cochilou. Estranhamente, o sono era reconfortante e revigorante, com sonhos tranquilos e pacíficos, bem diferente da última madrugada, em que nas vezes que tentara dormir lhe vinham pesadelos e tremores que impediam que ela relaxasse. Ali, no silêncio do escritório, adormeceu e pode finalmente descansar e parar de pensar nele e na briga que tiveram.

Quando acordou, o fez de súbito. Um espasmo percorreu todo seu corpo lhe fazendo pular da cadeira com o coração acelerado. Quanto tempo tinha ela dormido? Onde estavam os outros? Onde estava ele? Por que não lhe ligara até agora? Está bem, ela disse para ele não ligar, mas não esperava que ele obedecesse. Ele nunca fazia o que ela dizia, nem mesmo no trabalho, em que ela era sua superiora hierárquica. Mas diabos, onde estavam todos? Ela certamente não desejava enfrentar as perguntas dos colegas sobre o paradeiro dele ou mesmo o porque das olheiras e de seu sumiço, mas a completa ausência de todos no setor parecia uma piada do destino – e de muito mal gosto.

Resolveu ver as horas. Não sabia quanto tempo havia dormido. Pegou o celular em sua bolsa – o relógio, que tanto gostava, arrebentou durante a discussão quando ele a pegou pelo pulso para impedir que ela lhe acertasse um tapa no rosto. Somente então descobriu que o telefone estava sem bateria. Ah, meu Deus, será que ele ligou? Quanto tempo estava sem bateria? Imediatamente foi até a segunda gaveta da mesa, onde guardava um recarregagor, dentro de uma caixa de couro horrivelmente brega que ele lhe deu de presente certa vez. Conectou o aparelho na tomada, esperou alguns segundos e ligou o telefone celular. Mais do que nunca detestou aquela chata e insuportável música de saudação do telefone. Quando o telefone finalmente ligou, pode ver que passavam das nove e meia da manhã. Então, começou. Dezenas de mensagens de ligações perdidas. O número ela conhecia, era do celular de sua sogra. Bem típico dele. Discutir com ela e procurar refúgio na casa da mamãe. Será que ele dormiu lá? Seria bom se ele tivesse dormido na casa da mãe?

Então, sem mais por esperar, chegou uma última mensagem de texto. Enviada do celular da mãe dele. “Me liga. Urgente.” E agora? Fora ele quem mandou a mensagem? Afinal, que mensagem desaforada era essa, sem nem mesmo um pedido de desculpas, nem mesmo um “eu te amo” para suavizar tudo? Sabia que ele, quando irritado, podia ser insensível ou rancoroso até, mas isso era demais. Deveria ela ligar? E se a mensagem fosse mesmo da mãe dele?

Resolveu ligar. Fazendo o máximo de esforço para esconder suas emoções, ligou para o celular de sua sogra. Após algumas chamadas, finalmente atenderam o telefone. Falou secamente, porém baixo, como se tivesse vergonha que ouvissem sua voz – onde estavam todos? Mal começou a conversa e desligou o telefone. Saiu correndo, nervosamente, sem nem ao menos perceber que o telefone ainda estava conectado à tomada na parede. Não se importou com o fato de arrebentar o fio do carregador. Apenas saiu correndo, chocada e abalada demais para pensar em qualquer coisa. A rua, movimentada de pedestres, parecia mover-se em câmera lenta. Entrou no primeiro táxi do ponto em frente à empresa. E seguiu para o hospital.

Ao chegar ao Hospital Central, não conseguia pensar em mais nada. A discussão, a briga que tiveram, nada mais importava. Nem mesmo pensava mais no motivo de toda a celeuma. Então, na sala de espera da UTI, todas suas respostas foram respondidas. Lá estavam todos seus colegas de trabalho. E lá dentro, ele. Por isso não ligou. Por isso não foi trabalhar. Seu cunhado lhe explicou tudo. Ele estava no lugar errado na hora errada. De repente, ela desejou tudo de volta. A briga, a discussão, a tristeza, o choro, a incerteza. Tudo era melhor que a resposta e a verdade.

Dentro da UTI, nada de desculpas ou perdões. Apenas o adeus.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Um Pouco de Carinho

No último dia onze de agosto se comemou o Dia do Avogado. Meu dia. Curiosamente, apenas uma pessoa próxima lembrou e ligou para meu telefone para desejar felicidades. Clientes, amigos, familiares, todos, enfim, esqueceram da data ou o seu significado. Tal esquecimento generalizado é sintomático: a profissão do advogado perde, a cada dia, um pouco de sua dignidade perante o público em geral.

Permenace vívida em minha memória minha primeira aula na Faculdade de Direito da UFRGS quando o professor Manoel André da Rocha, da cadeira de Introdução à Ciência do Direito, discorreu sobre o dia onze agosto. Seu resgate histórico ensinou-me que a data correspondia ao dia de instalação das primeiras faculdades de Direito do Brasil, em São Paulo e Olinda. Dizia ele, pois, tratar-se de uma data prestigiada no mundo jurídico, sendo também uma data alusiva ao estudante de Direito. E também o Dia do Pindura, tão folclórico.

Todavia, mesmo em meio a uma campanha da OAB de resgate do orgulho do profissional advogado – a partir da qual se passou a celebrar o mês do advogado, e não apenas o dia – o profissional da advocacia continua esquecido e desconhecido da população. Evidente que todos sabem da profissão. Tanto sabem que somos protagonistas de excelentes piadas e anedotas. Mas somos muito mais. E por alguma razão, essa sabedoria se perdeu em meio à multidão.

O advogado é a tropa de choque da cidadania. Diariamente os periódicos inundam a vizinhança com notícias de desrespeito à coisa pública, aos direitos dos consumidores, a preceitos sagrados como a vida e integridade pessoal e patrimonial. Em meio a tantos abusos – sejam por pessoas sem consciência dos valores de vida em sociedade, seja pelo Estado ou Administração, que sufocam a população com medidas contrárias à lei – cabe ao advogado lutar por seu cliente. E mais. O advogado não batalha apenas por seu cliente, mas por toda a sociedade: a justiça de um é a justiça de todos. Ou assim deveria ser. Os valores contidos no exercício da advocacia são, pois, a defesa da população contra os abusos de toda a ordem.

Se cabe à advocacia defender a sociedade, quem protege o advogado? Ironicamente, vivemos uma crise institucional em todas as esferas da República justamente no momento de maior descaso com a profissão do advogado. Há um movimento silencioso para desmoralzar a classe. Clientes não mais respeitam seus patronos. Infelizmente, é cada vez mais comum ver clientes passarem calote e deixarem de pagar os honorários acordados. Buscam soluções mágicas às situações oriundas muitas vezes irresponsabilidade. E, mesmo quando o profissional da advocacia consegue solucionar o problema, são hostilizados por cobrarem – legitimamente, diga-se – por seu trabalho. Isso sem contar que a cada ato controverso, polêmico ou absurdo cometido por membros do Poder Judiciário ou do Ministério Público, o que se houve em uníssono nas ruas é o já famoso bordão “Advogado é f*da”.

De outro lado, os demais operadores do Direito pouco prestam respeito à classe de advogados. Isso me faz lembrar de outra aula dos tempos de faculdade. Ao ser apresentado às primeiras noções da cadeira de Processo Civil, o professor Rui Portanova, destacado desembargador e a quem considero, além de mestre, amigo, desenhou no quadro um triângulo, e dizia em alto e bom som: “este é o tripé da Justiça”. O tal tripé era formado por magistrados, promotores de justiça e advogados. E ensinava o bom mestre que não existia diferenças ou hirarquia entre eles. Todos são indispensáveis à Justiça, cada qual com sua atribuição. Mais uma vez, infelizmente não é assim na prática. A cada dia milhares de colegas advogados são aviltados em suas prerrogativas profissionais, em diversas circusntâncias. Para piorar, há a sistemática supressão de honorários de sucumbência, mediante compensação ou mesmo através de fixação de verba honorária ao arrepio da lei, em valores ínfimos, em flagrante prejuízo do sustento do profissional advogado e sua família.

Mesmo com o desabafo da falta de reconhecimento – e sobretudo respeito – por parte da população em geral e dos demais operadores do Direito, o que mais machuca é ver a advocacia e a profissão ser molestada por outros advogados. Apesar de ser a excesão à regra, a falta de decoro e comprometimento ao juramento praticado por alguns pretensos profissionais mancham a reputação de todos. A proliferação de cursos jurídicos no país – que começaram apenas com aquelas duas faculdade, em 11 de agosto de 1827 – a grande maioria de baixíssima qualidade (se é que há alguma qualidade no ensino em faculdades caça-níqueis) faz com que a cada ano milhares – isso mesmo, milhares – de novos bacharéis em Direito tentem fazer da advocacia um passatempo. Nesse exato momento, centenas e centenas de “colegas” advogados e advogadas denigrem a imagem do profissional advogado ao fazer da profissão um “bico” até a aprovação em algum concurso público qualquer, talvez até mesmo de nível médio. Como exigir respeitabilidade quando os próprios integrantes da classe não se dão ao respeito?

Praticar a advocacia, para mim, é motivo de orgulho. Enfrento dificuldades no trato com magistrados que se pensam superiores aos demais. Divirto-me e aprendo com o embate de idéias promovido com outros colegas em processos dos mais variados temas. Chateio-me ao ter que cobrar de um cliente os honorários previamente ajustados em contrato. Mas sobretudo orgulho-me de exercer a profissão que escolhi, e com ela obter meu sustento de forma honesta, árdua e edificante. Orgulho-me de fazer da minha profissão uma ferramente para a construção de uma sociedade melhor.

Mas, enfim, quem se importa? Dia onze passou e ninguém lembrou...

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Heróis

Da mesma forma como todas as crianças – sobretudo meninos – eu tive os meus heróis na infância. Mas não seria exagero dizer que o maior deles, mais que Luke Skywalker e o Homem-Aranha, era meu avô Aldo. Meu avô foi um cara incrível e, mesmo hoje, seis anos após sua morte, ainda assim me sinto influenciado por ele.
Meu avô não era um super-herói, com super poderes. Aliás, não suporto super-heróis que tudo podem e que são só virtudes. Superhomem e Capitão América são insuportáveis. O vô Aldo, por sua vez, era apenas humano, e como tal possuía um caminhão de defeitos. Mas ao lutar e tentar superar esses defeitos ele me deu uma lição que levarei comigo para sempre.
Desde pequeno, o Vô chamava minha irmã menor e a mim de “a bailarina do vô” e “o campeão do vô”, respectivamente, e aquilo nos enchia de orgulho. Havia entre nós uma identificação e um amor que fazia a convivência com ele mágica.
Poucos sabem que além de médico meu avô foi político. Foi vereador em Carazinho. Até minha avó Artêmia, esposa do velho Aldo, foi vereadora, tendo sido eleita a primeira mulher a presidir a Câmara de Vereadores de Carazinho. Ambos militavam no PTB. A vida política, todavia, foi abruptamente interrompida com o Golpe de 1964. Meu avô, que seria eleito deputado (nunca soube se era candidato a deputado estadual ou federal, mas no fim isso não fez diferença), teve os direitos políticos cassados e foi preso. Enquanto isso, em casa, minha avó, apavorada, cuidava das duas filhas pequenas, sem saber o que esperar do futuro da família.
Após ser solto da prisão – creio que meu avô, apesar de cumpadre do Brizola, não oferecia tantos riscos assim ao regime ditatorial dos militares – meu avô dedicou-se exclusivamente ao oficio da medicina. Abandonou sua paixão pela política pelo amor à família.
Getulista de carteirinha, o vô costumava tocar para minha mãe e minha tia, toda noite antes de irem dormir, um disco compacto com “A Carta Testamento” do “chefe” Getúlio. Era assim que ele se referia ao seu ídolo na política, “o Chefe”. Aliás, foi meu avô quem sempre me incentivou a tomar posição política quando, ainda criança, me levava até a Praça Central de Carazinho para depositar flores aos pés busto em bronze de Getúlio Vargas todo dia 24 de agosto. Este, aliás, era um ritual que ele realizava todos os anos, desde que minha mãe era criança.
A redemocratização do país aconteceu quando eu era ainda pequeno. Meu avô, mesmo aposentado da política, percebeu a oportunidade de fazer despertar naqueles ao seu redor uma consciência cidadã. E foi assim que ele me ensinou, antes mesmo de eu completar oito anos, sobre o trabalhismo de Vargas e Pasqualini e sobre a trajetória de seu bom e velho amigo e talvez mais notável expoente do trabalhismo, Leonel de Moura Brizola. O Tio Briza.
Eu nunca entendi direito como foi que se conheceram e como ficaram amigos. Tudo que sei é que meu vô Aldo e Brizola se conheciam desde os tempos de colégio e ficaram amigo ao longo dos anos. Ambos são de Carazinho e adentraram na política através do PTB. Quando do retorno de Brizola ao Brasil, após o exílio e às vesperas do fim do regime, era costume deles reunirem-se para um almoço ou janta, ou em Carazinho ou em Porto Alegre, a cada visita de Brizola ao Rio Grande do Sul. Era uma forma de cultuar a velha amizade. Mas eu sei que, no fundo, era um momento especial para meu avô reviver seu tempo na política, um tempo em que todas as suas ambições por um mundo melhor e mais decente pareciam pssíveis.
Foi nesse cenário que eu conheci a política. Na minha cabeça de criança era impossível dissociar a política da imagem do Tio Briza, como meu vô fazia eu chamar a Brizola. Lembro, até hoje, de um comício realizado em oitenta-e-alguma-coisa em Carazinho. Uma multidão se acotovelava para assistir aos intensos e envolventes discursos do Tio Briza. No palanque, líderes locais do já então PDT recebiam ao líder maior da sigla, Leonel Brizola. Abraçado ao líder trabalhista estava meu avô. E entre eles, eu, ainda criança.
Por mais que eu tente, acho jamais conseguirei me lembrar das palavras daquele discurso. Em compensação, as imagens impressas na minha mente, de mãos dadas com meu avô, a quem tanto amei, e com o Tio Briza, a quem aprendi a admirar, em frente a uma multidão que vibrava entusiaticamente apesar da manhã gelada de inverno, jamais se apagarão.
Evidente que sinto a falta dele. O vô faleceu um ano antes de Brizola, em 2003. Desde então o mundo ficou diferente. Talvez por desejar honrar a memória de meu avô, ou por um desejo de conhecer mais sobre um passado sobre o qual ele não costumava falar muito, comprei, em um impulso quando vi na livraria, a biografia de Brizola, “El Caudillo”, de F. C. Leite Filho.
O livro é leitura fundamental para quem deseja conhecer um pouco mais da história política de nosso país. A biografia trás, apesar do viés ideológico favorável às ações do líder trabalhista impresso pelo autor – o que muito me agradou, evidentemente – informações sonbre fatos políticos históricos esquecidos pelo povo brasileiro e mesmo gaúcho. A biografia é rica ao falar sobre a infância pobre de Brizola, mas é na análise dos grandes feitos realizados por Brizola na Prefeitura de Porto Alegre e nos Governos dos Estadados do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro que a obra atinge seu ponto alto. É entusiasmante ler a tragetória do idealista que luta contra o ranço político estabelecido e, de forma espetacular, encampa e estatiza multinacionais de capital norte-americano (ou estadunidense, como prefere um amigo meu) ou então lança um plano de educação para a população sem igual até hoje em noso país. E, sobretudo, é impressionante os detalhes de bastidores da vida política com que o Autor reconta a Campanha da Legalidade, quando Brizola enfrentou e venceu o movimento golpista em 1961.
Da leitura do livro “El Caudillo” tive a certeza de que meu avô, Brizola e Paulo Freire estavam certos: somente a educação salvará nosso país. A biografia de Brizola transborda os pensamentos do grande líder trabalhista e demonstra a devoção com que ele seguiu seus ideais de transformar a vida de jovens a partir de uma assistência estatal que tinha por base a educação. Se formos analisar, seu legado político – e isso o livro demonstra a quem quiser ler – foi a luta para fazer da educação da população brasileira, sobretudo das classes mais baixas, uma prioridade.
Esse entendimetno, aliás, foi algo que meu avô me ensinou e da qual nunca duvidei. Afinal, ele fez questão de pagar os estudos meus e da miha irmã, para garantir, justamente, que pudessemos fazer a diferença em nosso país.
Recomendo a todos que leiam esta biografia do Brizola. E que ao lerem, lembrem-se de meu avô, que juntamente com o Tio Briza, para mim é um dos protagonistas do livro.

domingo, 9 de agosto de 2009

Quem entender ganha um doce

Após anos de relacionamento com Natália, Adílson afirmava de forma categórica: não existe nada no mundo mais complicado que cabeça de mulher. Homem algum é capaz de entender o que se passa na mente de uma mulher. Nem mesmo outra mulher é capaz de entender sua semelhante. São eternas insatisfeitas, mas por quê?

Apesar de felizes em seu casamento, não raras eram as vezes em que se desentendiam a respeito de coisas banais, triviais. O raciocínio lógico e cartesiano de Adílson parecia afrontar a emotividade com que sua companheira pensava. Natália costumava reclamar que os homens – e por serem todos iguais, também Adílson – reclamam demais da forma de pensar das mulheres. Adílson bem que tentou entendê-la. Mas é impossível a qualquer homem compreender a confusão que são os pensamentos femininos. Simplesmente resignou-se. Amava, como ainda ama, sua esposa, bonita e inteligente. Mas entendê-la é impossível.

É inerente à condição masculina, em certo ponto da vida, levar puteada da esposa ou namorada sem saber o motivo. Simplesmente acontece. É como masturbação ou filme do Charles Bronson: faz parte da vida do homem. Certa vez, quando ainda eram namorados, na saída do cinema após assistir a mais uma comédia romântica igual a todas as outras, Adilson foi surpreendido com a pergunta: costumava falar dela, sobre a intimidade de casal, com seus amigos? Pensou por um momento e respondeu honestamente, com a consciência leve: “não”. Afinal, quando homens se reúnem, querem beber cerveja, falar baixaria, bobagens e sobre outras mulheres hipotéticas. Adilson, confiante na sua resposta e na insignificânsia da pergunta podia jurar que a conversa ficaria por isso mesmo. Ledo engano. Seguiu-se um longo suspiro e aquela frase quase inaudível: “tu tens vergonha de mim?”. Era “a” definição de chantagem emocional. A expressão de insatisfação na face de Natália dizia tudo. A noite terminara, e Adilson foi dormir sozinho em sua cama.

Aliás, quando solteiro, Adilson jamais soube valorizar o seu sono. O simples fato de ter uma cama só sua, com os lençóis e cobertas apenas para si era algo que merecia reconhecimento. Afinal, o homem depois de casado nunca mais terá onde dormir. A cama é da mulher. As cobertas, também. Tudo o que tem é o seu travesseiro. Morando junto com Natália a alguns anos, Adílson pode perceber, em um momento de inspiração divina, que na condição de homem casado tão somente conquistara o direito de dormir com sua mulher. Ela é quem permitia que ele dormisse na sua cama. E pouco importa que tenha sido ele quem comprou a cama com seu próprio dinheiro, com o colchão do jeito que gostava. Na cabeça de Natália, ela é quem manda na cama – e não, não se trata de sexo!

Recentemente, reunido com seus amigos no bar de sempre, Adílson percebeu que não conseguia saborear sua cerveja ou mesmo falar as besteiras comuns àquele momento sagrado de confraternização masculina. Até mesmo seus amigos, já bêbados e com a atenção fixa na nova garçonete que fazia treinamento no bar, perceberam que algo estava errado com Adílson.

Ao chegar em casa, foi até o quarto de casal onde, na cama, Natália lhe esperava assistindo à novela na televisão. Como quem quisesse compartilhar uma grande descoberta, ainda ébrio da cerveja consumida no bar, Adilson tomou a iniciativa da conversa:

“Lembra que eu reclamei que estava dormindo mal nas últimas noites? Que eu me queixava que sempre ficava sem cobertas durante a noite e por isso passava frio e acordava no meio da madrugada? Pois eu comentei com a turma do bar que tu costuma roubar as cobertas durante a noite e descobri: todas as mulheres roubam as cobertas quando dormem. É algo da natureza feminina. Não dá pra lutar contra. As namoradas deles fazem o mesmo. Viu? Agora sei que não adianta mais eu reclamar!”

“Como é que é?” O rosto de Natália franziu-se ao ponto de causar medo em Adílson. “Tu estavas falando sobre mim e nossa intimidade com aqueles teus amigos?” A voz imprimida era de profunda repreensão.

Mesmo sem entender direito, naquela noite Adilson dormiu no sofá.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Jogo da Vida

Futebol. Paixão nacional. Não existe coisa mais importante na vida que a paixão de um torcedor pelo seu clube. Ser torcedor é amar incondicionalmente seu time e embalá-lo nas horas dificeis, pois no momento das vitórias o coração transborda.
Futebol é coisa séria. Tão séria que a escolha do time do coração é para sempre. Se a religião não atende aos anseios da fé, se converte. Se acabou o amor, se separa. Mas o time de futebol não se muda nunca. Não se admitem no mundo viras-casaca. É antiético e imoral. Trata-se de uma responsabilidade enorme que, por óbvio, não pode ser tomada por uma criança. Criança não tem noção da importância dessa escolha. Por isso cabe ao pai indicar o caminho para se torcer para o time certo.
Quando o filho de Silas nasceu, tudo mudou. Era o fim das noitadas em bares, dos gastos descontrolados, da vida desregrada. Era preciso pensar na criação do pequeno Dudu, no seu conforto. E principalmente, era preciso garantir que ele torcesse para o Imortal Tricolor.
Na mesma hora nasceu o neto de Agenor. Seu primeiro neto. Sabia que sua filha e seu genro seriam ótimos pais, mas estava a disposição para ajudar no que fosse preciso. Mas o que afligia Agenor era o fato de sua filha, apesar de Colorada, não conseguir se impor ao seu marido. Agenor era avô há apenas alguns instantes mas já se decidira: o neto que tanto amava seria Colorado, como toda sua família.
Silas chegou no quarto onde sua esposa descansava após o parto com o filho no colo. O parto foi difícil, normal, sem anestesia. Escolha dela. Mas o desgaste e o estresse podiam ser observados em todos os membros da equipe médica ao final. Após nove meses de gestação, o primeiro filho do casal precisou de quarenta minutos para nascer. Natural que quando chegou nos braços do pai estivesse dormindo. Natural também que estivesse embrulhado nas cores do Tricolor.
Agenor fazia companhia à filha quando seu primeiro neto chegou carregado no colo do pai. Não tinha como deixar de se emocionar ao reconhecer no neto s traços de sua falecida esposa. Logo ela que passou os últimos anos de sua luta contra o câncer pedindo a sua filha por um netinho. Na porta de entrada do quarto, para que todos que passassem pelo corredor do hospital pudessem ver, uma bandeira do Colorado indicava o futuro do neto.
Dudu, recém nascido, nos braços da mãe, dormia calmamente. Silas e Agenor encaravam-se, olho no olho. Genro e sogro tinham um bom relacionamento. Costumavam sair juntos para pescar. Até dividiam as mesmas idéias políticas, votando nos mesmos candidatos. Mas eram proibidos de falar em futebol. O antagonismo de seus times e o fanatismo de cada um impossibilitava sequer que ouvissem juntos no velho radinho de pilha à rodada do Campeonato. Agenor mordia o lábio, furioso em ver seu primeiro neto nas cores do Tricolor. Sabia que teria que mudar de tática para derrotar o genro. Enquanto isso, Silas desfilava um debochado sorriso. Sabia que o sogro tentaria algo do tipo. E assim mesmo o sentimento de vitória era tão recompensador.
Impressionava o amor que pai e avô nutriam pelo pequeno Dudu. Mais impressionante ainda a devoção com que duelavam silenciosamente pela definição do time do seu coração. Os meses passavam e Silas não relaxava a vigilância sobre o sogro. A qualquer investida de Agenor para vestir Dudu com as cores do Colorado, Silas sempre aparecia com um novo brinquedo do Imortal Tricolor para reconquistar a atenção do garoto.
Dois anos após o nascimento de seu primeiro filho, Silas foi promovido no trabalho. Certamente que o aumento de salário seria bem-vindo, especialmente em vista dos planos de sua esposa engravidar novamente. Agenor ficou feliz pelo genro – afinal, fora ele quem o indicou para um antigo amigo, que após uma rodada de whisky o contratou. Sua felicidade também transbordava com a expectativa de o genro passar mais tempo na empresa. Assim teria mais tempo a sós com seu neto. Com o neto e com a missão de fazer dele um futuro torcedor do Colorado.
A tarde do sábado de inverno chegava ao fim e Silas dava graças por terminar os relatórios e poder chegar em casa para assistir ao jogo do Tricolor com seu filho Dudu. Sua esposa iria visitar umas parentes que estavam de viagem na cidade. Poderia então ficar a vontade para a partida, sem nenhum tipo de má vibração pela casa. Sentado no sofá, com um cobertor no colo e um cálice de vinho na mão, observava o pequeno Dudu a brincar. As imagens do jogo ainda não começaram a ser transmitidas, por isso o radinho estava sintonizado em AM. Quando o narrador anunciou as escalações e pronunciou o nome do Tricolor, Dudu olhou para Silas e perguntou, com a voz meiga e inocente de criança:
“Pai, eu sou Colorado?”
Silêncio. Era como se todos os sons do mundo tivessem cessado no mesmo instante. As luzes do teto começaram a girar. Pânico. Ouvir seu filho falar sempre foi um prazer para Silas. Mas aquilo era algo catastrófico. Como encarar a vida sabendo que seu filho lhe perguntava aquilo? Silas, já em pé, buscava palavras para falar, mas elas não vinham. Então conseguiu, com a calma mais falsa que já se vira:
“Filho, quem te disse isso?”
“O vô!”
Aquele velho safado. Silas sabia em seus ossos que Agenor não deixaria passar em branco a oportunidade. Quem diabos ele pensava que era? A paranóia foi tomando conta de Silas. Era óbvio. Foi o sogro quem lhe indicara para o emprego. Tudo não passava de uma sórdida armação, um plano meticulosamente calculado no qual se deixou apanhar. Só havia uma coisa a fazer.
Enquanto isso, Agenor servia um copo de seu whisky favorito para assistir ao jogo do rival pela televisão. Seu folgava na rodada, mas fanático por futebol como era, não perderia a chance de secar Tricolor. Dera até uma risada. Sentia que o jogo de hoje guardava uma surpresa. Tudo estava meticulosamente preparado. O ritual que sempre repetia antes das partidas – fossem do seu Colorado, fossem do Tricolor – não podia faltar, jamais. Meia de lã nos pés (“pé frio nunca!”), bandeira sobre a mesa, poltrona reclinada na posição mágica, whisky com o número exato de pedras de gelo. Nem lembrava mais qual a primeira vez que utilizara o ritual, mas lembrava que ele havia funcionado nos últimos títulos. Tudo estava pronto. Sentia que o jogo guardava uma suspresa, o ritual lhe dizia. Luz apagada, televisão muda, radinho de pilhas ligado. O jogo estava prestes a começar. O tão odiado Tricolor entrou em campo. E a surpresa se confirmou.
No estádio, Dudu, todo fardado de Tricolor, entrava em campo de mãos dadas com o craque do time e ídolo dos torcedores. Na beira do campo, Silas abanava para as câmeras de televisão. Quando apareceu em rede nacional, o sorriso em seu rosto dizia tudo.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

No Quarto Escuro

No quarto escuro, somente a luz vermelha do televisor desligado era visivel. Na cabeceira da cama, uma camiseta usada escondia o display do rádio-relogio que indicava ser doze pras duas da madrugada. Élio dormia um sono agitado, desconfortável com o calor. Mais que isso, dormia tristemente, depressivamente. Após rolar na cama até os lençóis cairem no chão, uma tristeza profunda fez com que acordasse quase chorando. Sabia que não havia razão para as lágrimas, mas não conseguia impedir. No quarto escuro, sentado ao pé da cama, a triste figura contorcia-se em desespero, como se uma tragédia estivesse por vir.

Fazia alguns anos que enfrentava um tristeza sem sentido. Depressão. Nem parecia mais com o jovem que alegre e de riso fácil que todos apontavam como um lider natural capaz de inspirar seus colegas. Ali, no escuro, quilos e quilos mais gordo, parecia uma sombra de ser humano, dominado pela angustia e pelo desespero de sofrer miseravelmente sem razão nenhuma. Ao pensar em como começou a tristeza, não era capaz de dizer. Buscava incessantemente uma explicação racional para explicar o ponto a que chegara. Não havia explicação nenhuma. E isso, por si só, parecia aumentar ainda mais o desespero de Élio.

Recolhido em seu quarto escuro, não permitia nem mesmo que a luz da noite adentrasse seu quarto. Achava que assim seria capaz de esconder sua fraqueza, sua maldição. De repente levantou-se. Caminhava em circulos, o rosto em lágrimas, os braços agitados, a respiração ofegante. Parecia argumentar consigo mesmo, um debate contra si próprio, e a sensação era a de que perdia a discussão. Sua agitação fez com que a angustia da tristeza aumentasse, pois não conseguia livrar-se do sentimento de miséria. Tentou lembrar de seu último sorriso, e o que lembrou foi pior que uma faca atravessando seu coração. Não entendia porque não podia ser feliz. Justo ele que tinha conquistado tudo o que sonhara, com méritos próprios. Justo ele que era tido como um jovem exemplar e pronto para o futuro. O que acontecera então que não conseguia livrar-se daquele buraco em sua alma?

O desepero foi tomando conta. Não aguentava mais. As cólicas provocadas pelos prantos há muito viraram uma dor fisica que não mais podia suportar. Onde estava a salvação? Em pé em seu quarto, seu comportamento nervoso e desesperado não era capaz de acordar sua esposa que dormia profundamente ao seu lado após um dia exaustivo de trabalho. Ao olhá-la, Élio sentiu desprezo de si próprio. Como podia deixar a mulher que amava enfrentar sozinha o fardo de manter o casamento enquanto ele fingia uma vida normal? Como podia encarar o fato de esconder-se diarimente em seu escritório, sem ter contato com outras pessoas, com vergonha do que se tornara? Não suportava a humilhação de ser menos homem do que desejava ser.

Ao natural, sem perceber, saiu do quarto caminhando. As lágrimas pararam de escorrer. Parecia firme, resoluto, como desejava diariamente. Não havia tomado nenhuma decisão. Simplesmente sabia o que fazer. Pela primeira vez em meses, tinha certeza do que fazer. Iria por um fim à depressão.

Sentado à mesa de seu escritório doméstico montado no quarto ao lado, Élio abriu a primeira gaveta do gaveteiro embutido. Do fundo, tirou de dentro o revólver calibre trinta e dois que fora de seu bisavô. Uma raridade: um Smith-Weston com cabo de madrepérola. A mesma arma com que o seu antepassado havia tirado a própria vida.

Com uma tranquilidade de causar inveja, pegou a caixa de munição e carregou o tambor com cinco balas, deixando apenas um espaço livre. Apagou a luz de cabeceira e reclinou-se na cadeira de trabalho que estranhamente parecia mais confortável que da última vez que ali sentara para trabalhar. Abriu a janela. O ar da noite era reconfortavelmente bom. Uma brisa fresca vinha com o vento leste, anunciando chuva. Ainda com o revolver na mão, fixou o olhar no prédio em frente. Não sabia o que procurava, apenas olhava como se admirasse o que via. Bem devagar, girou o tambor do revolver várias vezes, dando ao destino uma chance em seis de mantê-lo vivo. Engatilhou a arma. A sensação que percorreu seu corpo era estranha, afinal em seus trinta e três anos de vida jamais havia disparado um tiro sequer. Mesmo estranha, a sensação pareceu-lhe boa. Tão boa que se perguntava porque não havia feito isso antes.

Foi então que percebeu, no relógio de sua mesa de trabalho, iluminada pelas luzes da rua, que já eram cinco e meia da manhã. Em alguns minutos o sol da alvorada iria nascer no horizonte. Logo depois, Ângela, sua esposa, acordaria para mais um dia de trabalho. Foi então que percebeu que o braço com o qual segurava a arma parecia pesado. Somente então se deu por conta que o revólver não estava encostado na sua tempora, como planejara. Concentrou-se então para levantar o braço e por a arma em posição. Aquilo terminaria hoje e agora, pensou. Seu braço tremia, sua mão não conseguia manter a força para segurar a arma. Precisou do auxilio da mão esquerda para erguer o revolver em posição.

Sua coragem fugia de seu corpo. Ficou gelado, suando frio. Seu estômago parecia girar dentro de sua barriga, como quando ficava nervoso e com medo ainda criança, mas fazia pose de bravo para os a sua volta. Não sentia mais seus pés. Sua boca ficou seca, seus olhos se apertaram, uma vez mais inundados em lágrimas. Não tinha mais volta. Era preciso acabar com o sofrimento. No quarto de casal, o alarme do rádio-relogio ligou, abafado pela camiseta. A música que Ângela escolheu para dançarem no casamento estava tocando. Élio sorriu um sorriso nervoso, sofrido.

Nenhum sorriso jamais deveria ser tão doloroso na alma de alguém.

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Ângela acordou de susto, com o coração em disparada.

Sempre era assim quando dormia fundo e o telefone tocava chamando-a para atender um paciente de última hora. Mesmo qando viajavam em férias e Élio insistia que desligasse os telefones, bastava o motor do frigobar do quarto de hotel religar na madrugada para que levasse um susto e acordasse sentada na cama.

Mas dessa vez era diferente. O barulho que lhe acordara foi tão forte, e a sensação na boca tão amarga que sentiu vontade de vomitar. Somente então, retornando aos seus sentidos, sentiu o cheiro de pólvora que vinha do quarto ao lado. Chocada, com medo, virou-se para o lado oposto da cama para descobrir, horrizada, que Élio não estava lá. Um desespero tão grande tomou-lhe conta que saiu semi-nua da cama, aos berros.

O sol já nascera no horizonte e se escondia atrás dos edifícios da cidade, mas o quarto onde Élio montara seu escritório estava plenamente iluminado. Ângela parou na porta, assustada, apavorada, e caiu de joelhos no chão, aos prantos. Em minutos, teria que ligar para o trabalho e informar que não iria aparecer. Não conseguia pensar no que dizer para justificar sua ausência. Apenas deitou-se no chão, encolheu as pernas e apertour os braços em volta da barriga. Aquilo era demais para suportar.

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Na cozinha, sentados na mesa do café da manhã, Ângela e Élio tentavam comer. Eram mais de dez horas quando ela finalmente reuniu forças para falar algo.
- Por quê?
- Não sei – respondeu Élio, ainda com o rosto inchado da noite insone.
- O que tá acontecendo, Bem?
Chamavam-se de “Bem” um ao outro na intimidade, algo que traziam desde os tempos de namoro.
- E-eu não sei. Não aguento mais chorar.
- Mas pra quê dar um tiro na parede? Eu nunca senti tanto medo e...
Foi interrompida pelo giro de corpo de Élio. Sentado no banco de madeira da cozinha, girou até ficar de frente para Ângela e, pegando-lhe as mãos, balbuciou em voz baixa, praticamente inaudível, enquanto olhava para o chão: - Eu não atirei na parede.
- Ãhn?
- EU NÃO ATIREI NA PAREDE! – gritou Élio, levantando-se do banco e apoiando-se no balcão da pia.
Os olhos de Ângela arregalaram-se e o pânico tomou conta de seu rosto. Engoliu em seco, levantou do banco e aproximou-se de Élio. De leve, tocou com as palmas das mãos nos braços do marido, e com uma força interior imensa, acalmou seu tom de voz.
- Como assim?
- Eu errei o tiro. Eu errei o tiro. – Élio chorava aos prantos, repetindo a frase em meio aos soluços, e caiu sentado no taÉlio sujo da cozinha, joelhos dobrados e braços em volta. Eu tentei... Eu quis.. Sabe? Eu atirei e errei. Errei porque minha mão tremia tanto e o gatilho parecia tão pesado que na hora do disparo a arma emborcou e o tiro saiu desviado. Eu sou tão inútil que nem me matar eu consigui...
Ângela chorava junto ao marido. Abraçou-lhe e tentava acalmá-lo. Não tinha ideia de que seu marido poderia tentar algo desse tipo. Estavam juntos há dez anos e ela sempre sabia quando ele tinha algo a lhe perturbar. Onde foi que errara então? O que aconteceu para que chegasse a esse ponto? Como pode deixar tudo isso passar desapercebido?
- Élio, olha pra mim – sua voz ainda era marcada pelo choro. Élio olhou-a, com os olhos vermelhos incapazes de esconder a vergonha que sentia. Élio, a gente vai procurar ajuda e vamos superar isso juntos , O.K.?
Élio estava incapaz de falar e apenas balançou a cabeça afirmativamente.
- Nós vamos superar isso, tá? Vamos descansar um pouco e amanhã de manhã marcamos um psiquiatra pra ti.
Sentados no chão da cozinha, Ângela abraçava Élio como se fosse ela, e não ele, uma gigante. Mantinha a cabeça de Élio entre seus seios, e em voz baixa, tentava fazê-lo parar de chorar.
Sempre fora assim. Desde que se conheceram, era ela quem tinha de ser a mais forte emocionalmente. As crises que marcaram fases do relacionamente sempre foram resolvidas por ela – invariavelmente seguidas por horas e horas de pranto de Élio. Ângela realmente não se importava com alta emotividade – ou falta de controle emocional – de Élio. Afinal, ele era extremamente inteligente e capaz. Em assuntos profissionais, em oposição aos assuntos pessoais e familiares, era Élio quem se destacava. Como fora, então, que deixou de perceber que seu marido estava no limite da depressão? Logo ela, médica, deixou de ver os sintomas de uma clássica e severa depressão. Por mais doloroso que fosse, sabia que não podia se entregar à culpa. Devia ser forte por ambos, por mais desgastante que fosse.
Amanhã eles começariam novas vidas.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Juiz é juiz, advogado é advogado

Após ler o artigo do economista Roberto Macedo publicado no EV de 08.07.2009, fui compelido a escrever as presentes linhas. Isso porque, apesar de respeitar a opinião do articulista (democracia, afinal, é isso), divirjo totalmente do ponto de vista expressado, de que juízes não precisariam de diploma de bacharel em Direito.

Primeiramente, me espanta a premissa tomada pelo respeitável artigo “Juízes - por que só advogados?”.

Juiz não é advogado. E nem precisa ser. Aliás, com o perdão do exagero, me sinto ofendido quando pensam que juiz é advogado. Esse é um erro comumente verificado na população leiga: acreditar que a Advocacia é um degrau para a Magistratura.

Sinto-me agredido pois tal pensar diminui a profissão do advogado. A Advocacia, a mais bela das carreiras jurídicas, já sofre demais com pretensos advogados que unicamente fazem “bico” na profissão, sem depositar o respeito que a classe merece. Sofre com as constantes piadas criadas em alusão aos maus profissionais – os quais são exemplarmente punidos pelos tribunais de ética da OAB.
E, agora, com as exigências de três anos de prática jurídica para aprovação em concursos para a Magistratura, uma vez mais a Advocacia foi relegada a “passatempo profissional”.

Não desejo me afastar do tema, mas as considerações iniciais eram importantes. Como advogado militante e orgulhoso, precisava defender aquilo que acredito. Mas defendo também a manutenção da exigência do diploma de bacharel em Direito (ou Ciências Jurídicas e Sociais) para o exercício da Magistratura.

Já escutei na rua que engenheiros seriam melhores juízes. Balela. Economistas então? Piada. A ciência do Direito e, sobretudo, a prestação jurisdicional não podem ser resumidas a fórmulas cartesianas de pensamento ou senso íntimo de justiça. Existem leis e, mais que isso, princípios que somente são ensinados e colocados em pauta quando do estudo do Direito. O bacharel em Direito – e aqui me refiro a todas as carreiras jurídicas – possui uma preparação própria e árdua que lhe permite integrar os anseios da vida real com a utopia prevista nas normas legais, constitucionais e meta-juridicas.

O magistrado precisa do curso de Direito. Se possuir formação acadêmica em outras áreas, tanto melhor. Mas o diploma de bacharel em Direito é fundamental. Pois se as questões do Judiciário passarem a ser julgadas com a emoção e com o achômetro, e não mais com a razão e com a técnica, estaremos a um passo da extinção do Estado de Direito.


(originalmente publicado no site Espaço Vital em 10.07.2009)

Turmas Recursais da Justiça Federal: o novo círculo do inferno

O inferno, conforme a obra “A Divina Comédia” de Dante Alighieri, possui nove círculos, onde são jogadas as almas dos pecadores conforme os pecados cometidos em vida. Cada um dos círculos “oferece” um castigo ou uma punição diferente, mas todas possuem algo em comum: o tormento eterno.

Pois avalio que o maior de todos os pecados e a pior de todas as blasfêmias que se pode praticar, cuja punição e tormento eterno se recebe ainda em vida – e não após a morte – é exercer a Advocacia junto às Turmas Recursais dos Juizados Especiais Cíveis da Justiça Federal do RS, especialmente no rito especial do processo eletrônico, ou e-proc.

De acordo com a Lei nº 9.099/95, os Juizados Especiais primarão, entre outros, pelo princípio da celeridade processual. Tanto o é que - em nome da celeridade e informalidade - não raras vezes observa-se a violação de prerrogativas processuais asseguradas no ordenamento jurídico pátrio. A Lei nº 10.259/2001 buscou, com inspiração e subordinação, inclusive, na referida Lei nº 9.099/95, agilizar e dar maior celeridade aos processos da Justiça Federal, fixando um limite de alçada.

Diferentemente da Justiça Estadual, em que a opção pelo rito ordinário ou especial é facultativa, na Justiça Federal o rito do e-proc para processos até 60 salários mínimos é obrigatório. De se esperar, portanto, que frente a essa obrigatoriedade o procedimento seja efetivamente ágil e célere, como promete ser.

Mas tudo não passa de ilusão.

Os processos submetidos à apreciação dos Juizados Especiais Cíveis Federais serão, invariavelmente, remetidos para julgamento pelas Turmas Recursais – afinal, a União Federal e demais entes públicos recorrem das sentenças proferidas até mesmo quando lhes são favoráveis! E é aqui, nas Turmas Recursais, que o advogado, como ser humano, pecador e blasfemo que ousou escolher profissão que não possui as vantagens de seus equivalentes magistrados e promotores na persecução da Justiça, sofre o tormento e punição em vida: a longa e injustificada demora na prestação jurisdicional nas Turmas Recursais dos JEFs.

O descaso no julgamento de processos, que demoram um, dois ou até três anos para serem julgados viola o bom-senso, ofende a lei e faz por merecer a alcunha de décimo círculo do inferno. Há um ano, escrevi para o Espaço Vital pequena manifestação com o título “O sofrimento de atuar nos JEFs”, onde citei o processo nº 2004.71.50.005864-5, que remetido à 2ª Turma Recursal em 09.02.2005 até aquela ocasião ainda não havia sido julgado.

Pois bem (ou mal?). Passado esse um ano, meu tormento em vida por escolher a profissão de advogado persiste. Na imagem que pode ser acessada no link que segue no fecho deste artigo, poderão ser vistos processos com andamento – ou melhor seria dizer “paramento”? – de mais de um ano. O processo nº 2004.71.50.006013-5 está concluso para julgamento desde 15 de dezembro de 2006. Isso seria celeridade?

Qual o demônio responsável por esse castigo imposto? Estão os magistrados ou serventuários da Justiça Federal cientes do problema?

A morosidade que se vislumbra nos processos do rito especial do e-proc contradiz tudo o que defendia o TRF da 4ª Região ao lançar o processo eletrônico e sua obrigatoriedade. A demora no julgamento de processos de baixa complexidade e valor inferior a 60 salários mínimos pune a parte, que buscou o Judiciário justamente por se ver impotente frente ao ente estatal. E pune, sem qualquer dor de consciência, o profissional advogado que é responsabilizado por seus clientes pela demora no andamento do processo.

Quando se fala em Justiça ou em Poder Judiciário a população em geral, em sua grande maioria, pensa logo em seguida em “advogado”. Ao querer reclamar, não pensa em “juiz” ou “solução de conflitos” ou “proteção dos direitos de cidadania”. Nada disso. A associação primeira é “advogado”, e é justamente esse o profissional que sofre o tormento da demora e da morosidade em sua reputação profissional e quiçá pessoal.

Oremos.


link externo: Processos parados

(originalmente publicado no site Espaço Vital em 07.04.2009)

O sofrimento de atuar nos juizados especiais federais

Foi com preocupação que li o artigo “Juizados federais e celeridade processual”, do colega Alexsandro Oliveira (Espaço Vital de 08.02.2008). Sendo um advogado de atuação na esfera estadual e federal, experimento os dissabores de ver meu trabalho desrespeitado nos juizados especiais, sobretudo os federais.

A Lei nº 10.529/2001, no § 3° do artigo 3°, fixou que a competência dos JEFs, para causas de até 60 salários mínimos, será absoluta nos foros onde estiverem instalados. Significa dizer que as partes e advogados não poderão optar pelo procedimento ordinário, submetendo-se ao rito da Lei nº 9.099/95. A esta realidade, soma-se a obrigatoriedade de utilização do sistema E-Proc de processo eletrônico por Internet – mas esta é uma outra história...

Atuante em Porto Alegre, não posso deixar de concordar com o caro colega Alexsandro. Com efeito, a prestação jurisdicional nos processos de minha responsabilidade nas varas dos juizados especiais federais cíveis, apesar de nem sempre serem da melhor sapiência, foram sempre céleres, em encontro ao principio que norteou desde o início a instalação dos JEF´s no âmbito da Seção Judiciária do Rio Grande do Sul.

A atuação nas turmas recursais, todavia, causavam vexame à Magistratura gaúcha e comprometem não apenas a imagem da Justiça Federal em geral, mas estende sua mancha ao próprios profissionais advogados obrigados a atuar nos juizados especiais.

A exemplo do colega de Rio Grande, possuo inúmeros processo aguardando julgamento há mais de ano e meio. O caso mais emblemático – e por isso mesmo, mais preocupante – é o processo nº 2004.71.50.005864-5, que remetido à 2ª Turma Recursal em 09.02.2005, até a presente data não foi julgado ou apreciado pelos juízes responsáveis.

Um processo que aguarda três anos para ser julgado em um procedimento tido por célere e ágil compromete a imagem do advogado. É uma barbaridade o que se comete ao permitir que processos acumulem, sem que se possa dar satisfação às partes que recorrem ao Judiciário para resolver suas demandas.

Às partes, aos clientes, o vilão será sempre o profissional advogado, que é assim duplamente penalizado: em sua imagem profissional, arranhada pela morosidade inexplicável e absurda de um procedimento que já nasceu fadado ao fracasso, além de seu sustento, na medida em que o processo não chega ao fim não poderá receber seus honorários.

Vale dizer, por fim, que a lentidão e incapacidade da Justiça Federal no âmbito do Rio Grande do Sul de lidar e solucionar os problemas verificados no sistema E-Proc e nos processos dos Juizados Especiais Federais (sobretudo nas turmas recursais) expõe a ineficiência da Justiça como um todo.

Como advogado, não desistirei de lutar por melhores condições de trabalho. Porém o desejo é apenas o de respeito, negado pela situação presente.


(publicado originalmente em 15.02.2008 no site Espaço Vital)

Se fosse bom não seria de graça

Se alguém me pedisse um conselho, eu diria “não case”. Claro que ninguém me pede conselhos, e por isso mesmo que nós, homens, continuamos a cometer os mesmo erros. Pode parecer um golpe, mas eu mesmo sou casado – quer dizer, juntado. Mas dá no mesmo. E muito bem casado. Feliz. Mas ser solteiro é tão mais fácil.

Qualquer homem, no tempo de um copo de chopp, é capaz de fazer uma lista de vantagens e desvantagens de ser casado e de ser solteiro. Não se trata disso. A questão é mais profunda e é isso que não ensinam nos filmes do Charles Bronson: casamento dá muito trabalho. Por mais óbvio que pareça, não estou falando daquela baboseira de mulher de que “casamento exige esforço e sacrifício” ou que “é uma luta pra manter o amor aceso”. Pra puta que pariu essas lenga-lengas. Eu estou falando de trabalho duro, de romper os paradigmas masculinos.

Outro dia, refletindo sobre a ideia central de “sou feliz agora que realizei o plano de me mudar com minha noiva para o nosso apartamento novo?”, tive um rompante de genialidade e fiz uma lista das cinco coisas que mais acontecem na vida de um jovem homem recém casado:

1 - Fazer compras no supermercado, mesmo quando a geladeira está cheia
2 - Botar as roupas e lençóis e toalhas para lavar
3 - Limpar a casa periodicamente contra a vontade
4 - Tomar puteada da mulher por ficar jogando videogame quando na verdade devia fazer os itens acima
5 - Tentar fazer tanto sexo quanto imaginava que faria antes de morarem juntos

Eu comparo a vida de solteiro que tinha antes com a de casado e digo que ser casado é muito difícil. Mais do que se possa pensar. E não se trata de um dilema sobre a monogamia ou sobre noitadas ou sobre conquistar novas mulheres. Não, isso tudo é fichinha. Eu to falando de algo muito mais profundo: o fim da mordomia.

Existem dois tipos de solteiros, os que moram sozinhos e os que moram com os pais. O primeiro tipo é um relaxado. O segundo também. O solteiro que vive sozinho costuma viver um dia depois d outro, sem maiores planejamento quanto a limpeza, roupas, cozinhar... O que vive com os pais também! É incrivel, mas nós homens não fomos feitos para as tarefas domesticas. Sempre existiu alguem pra fazer isso por nós e, se por alguma razão não tivesse ninguém, azar, que as coisas fiquem sem serem feitas.

Mas depois de casado as coisas mudam. Agora tem uma mulher controlando cada detalhe da preguiça e relaxamento do comportamento masculino. É impressionante, mas é verdade. Quer jogar as roupas sujas atrás da porta pra ir tomar banho? OK, mas junte-as depois. Por que? Não sei, mas não me deixam mais deixar as roupas atrás da porta mais do que 30 minutos. Derrubou farelo de comida no chão? Varra o comodo inteiro. Não sei porque, mas acho que é a fascinação que a vassoura exerce nas mulheres.

“Vai se fuder, se minha mulher ficar me regulando nessas coisinhas bestas, mando ela carpir” dirá o despreparado e ingenuo leitor. Pois bem, homens precisam de sexo, mulheres definem se eles farão sexo ou não. Simples assim.

E ninguém nunca colocou assim o preto no branco.

Mas isso é se quiserem o meu conselho.

O Preço

Foi meu pai quem me disse quando eu ainda era guri que vivemos em um país de medíocres. Honestamente, acho que ele estava certo. O país da mediocridade é um lugar inóspito para se viver, prosperar. Especialmente quando se é inteligente. Ser inteligente virou uma maldição.

Qualquer pessoa é capaz de apontar soluções. Evidentemente, nem todas as soluções serão corretas. Acontece que quando se possui um grau de inteligência acima do homem médio – e por isso, medíocre – não se aponta apenas solução. É natural quando a mente inteligente vê o problema, de tentar entendê-lo, compreendê-lo, solucioná-lo e, mais importante, resolvê-lo de forma a impedir que o problema se repita. Simples, poderia se dizer, mas não é assim que funciona.

Deixe-me contar sobre um menino com enorme potencial. Não interessa seu nome, pois poderia ser Pedro, Fábio, José, Francisco... Seu nome não importa pois trata-se de uma amarga situação que acontece repetidamente, em inúmeros lugares diferentes, em famílias diferentes, em épocas diferentes. Mas enfim, ao menino. Adão.

Adão, filho de pais mais inteligentes que a média, foi feliz a ponto de herdar a capacidade de pensar, raciocinar e compreender o mundo ao seu redor de seus genitores. Sua infância foi normal, com acontecimentos pitorescos comum a qualquer pequeno. Mas ao alcançar idade escolar, sua mente adquiriu uma importância que o meio onde estava não conseguiu compensar. Sem maiores condições econômicas, Adão frequentou toda a pré-escola em rede pública. Para que não desperdiçassem a capacidade intelectual do filho, o casal realizou verdadeiros sacrifícios para matricular o pequeno Adão em uma escola privada.

Adão teve sorte. Teria, então, chance de desenvolver suas capacidades e aprimorar sua inteligência. Mas este é um país de medíocres, e nem todos os seus cidadãos pertencem à mediocridade por escolha. Aliás, creio ninguém escolha ser medíocre. Ocorre que a natureza é perversa com alguns, reservando-lhes pouca capacidade intelectual. Outros, todavia, são vítimas do sistema. O sistema que sustenta a mediocridade tolhe oportunidades e prende a grande maioria num rodamoinho de de desilusões. Sem chances de crescer, uma inteligência em potencial não passa disso: potencial. O verdadeiro segredo para gozar de inteligência acima da média geral é simples. Pura sorte.

Adão teve sorte.

Estudou em colégios particulares. Colégios, no plural, pois sua mente lhe exigia mais. Sua escola nunca lhe era desafiadora o suficiente. Aprender era fácil. Suas notas sempre estavam entre as melhores – quando não eram as melhores. Adão absorveu o máximo de conhecimento possível, aprendeu a usar sua capacidade intelectual. Mas isso em nada se deve por que era de fato inteligente. Adão atingiu um nível de excepcional inteligência porque teve sorte. E por ser inteligente, ele sabe disso.

A perspectiva de saber que a principal caracteristica que lhe distingue de outros - sua imensa capacidade intelectual – é um mero lance de destino pesa de sobremaneira na alma de qualquer pessoa. O conhecimento do mundo ao redor – e não necessariamente o mundo, talvez apenas seu país, sua cidade, seu bairro – e, mais importante, sua compreensão com seus problemas, mazelas e imperfeições são igualmente um fardo para quem é capaz de ver tudo isso. A inteligência, posta aqui como uma capacidade de ver o mundo sob uma perspectiva critica que autorize a ver o bom e, especialmente, o ruim da vida é, no fim, um fator de tristeza. E o lance de sorte, ironicamente, torna-se um lance perverso.

Adão é talvez umas das pessoas mais inteligentes que exista. Contudo, é impossível saber. Apesar de ter tido sorte quando jovem e ter desenvolvido sua mente tanto quanto fora possível, o país da mediocridade não tem onde absorvê-la. Sua inteligência, que tanto poderia fazer pela sociedade em que vive, ou pelas gerações futuras, na prática, não serve para nada. É puro potencial. Desperdício.

Adão é inteligente. E por isso mesmo é infeliz. A natureza – alguns dirão Deus – lhe deu um dom. Mas cobrou um preço talvez alto demais a ser pago. Saber, entender, compreender o mundo ao redor parece ótimo, mas assola a alma quando se descobre a impotência de resolver os problemas. A felicidade é fugaz, a passo que as aflições, angustias e desolações persistem. É impossível alguém com a inteligência como a de Adão passar incólume pela constatação dos podres que cercam a todos. A inteligência tem seu preço, e aceitar esse preço de forma a minimizar a tristeza que a acompanha exige algo que nem mesmo alguns dos mais inteligentes do mundo possuem. De nada adiante esperaram uma resposta, pois eu mesmo não sei.

Ver pessoas morrerem por incompetência das administrações públicas é triste. Ver como um sistema de impostos sufoca a produção e retira a possibilidade de criar novos empregos à massa de desempregados que lutam diariamente por sub-empregos, degradantes e humilhantes, apenas para terem como alimentar o filho no fim do dia, é aterrador. Mas o pior é saber como solucionar isso tudo e ver-se incapaz, fadado a viver o dia-a-dia apenas para sua própria sobrevivência, forçado a ser apenas médio, medíocre.

Ter o potencial, através da inteligência privilegiada, de ser diferente e, mais fazer a diferença a outras pessoas e ser incapaz de usá-la, pelos mais diversos fatores – e todos de completamente conhecidos - é um fator de extrema miséria, infelicidade. Adão não resistiu. Ser infeliz e saber o porque é conflitante. Como permancer preso à tristeza se conhecia os seu grilhões? E foi assim que Adão pensou, analisou, racionalizou e, por concluiu na sua solução. Por a solução em prática exigiu – e ainda exige – muita coragem de Adão. Isso porque a própria solução lhe faria infeliz, mas em um grau menor e mais tolerável do que sua imensa tristeza por sua inteligência desperdiçada. Adão decidiu ser burro.

Após terminar seus estudos e receber o diploma na faculdade, Adão está continuamente utilizando sua impressionante capacidade intelectual em seus constantes esforços para ser burro. Dia após dia cala as vozes em sua mente e impede que os acontecimentos do país e do mundo lhe façam sentido. Esforça-se apenas no sentido de ver a vida como a grande e esmagadora maioria a vê, e para tanto dedica boa parte de sua inteligência. Assim, sem entender a fundo o mundo ao seu redor, centrado apenas em seu dia-a-dia e preocupado apenas com sua vidinha ordinária, sem nada de mais especial, busca encontrar a felicidade que sua inteligência lhe negou.

Enfim, resolveu ser um mediocre. Mais um feliz mediocre.